Bernardo Carvalho

Romancista, autor de 'Nove Noites' e 'Os Substitutos'

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Descrição de chapéu Livros LGBTQIA+

Romance lembra que ouvir os fantasmas é o que está por trás da literatura

Vencedor do National Book Awards, 'Blackouts', de Justin Torres, revela muito da nossa relação com o passado e o real

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No centro de "Blackouts", romance de Justin Torres que venceu o National Book Awards há duas semanas, está um texto histórico que não só explica o título do livro como revela muito da nossa atual relação com o passado e com o real.

"Blackout" quer dizer tanto apagamento, obliteração de palavras ou frases, no caso de um texto, como perda da consciência ou lapso de memória. Entre essas duas acepções, o que está em jogo é a capacidade de memória e imaginação. E a premissa de que não pode haver uma sem a outra.

Justin Torres, autor de 'Blackouts', em Los Angeles - Jessica Lehrman - 6.out.23/The New York Times

Ao tomar distância do realismo, Torres dá a chave do romance. Quando se aproxima do "Palácio" ("palace", em inglês, corruptela de "place", lugar de observação) à procura de um velho com quem conviveu na juventude, na época em que estavam internados na mesma instituição psiquiátrica, o protagonista entra (e nós com ele) numa dimensão do real que já não pode ser traduzida por uma ideia simplista e confortável de representação.

Como o narrador à procura do pai em "Pedro Páramo", de Juan Rulfo, um dos clássicos latino-americanos citados em "Blackouts", o protagonista se embrenha num labirinto complexo, mundo da ausência e dos mortos.

No quarto onde definha à espera da morte, como na cela de "O Beijo da Mulher Aranha", de Manuel Puig (outra referência explícita do romance), o velho companheiro de hospício conta ao recém-chegado uma série de histórias. Entre elas, a de um relatório sobre variações homossexuais, publicado nos Estados Unidos em meados do século 20.

Na origem desse relatório, há uma mulher, ela mesma uma dessas "variações", que por um momento acreditou poder confiar à ciência o material que tinha em mãos: depoimentos de indivíduos do seu círculo de relações, além do próprio testemunho. É a história de uma traição e de um apagamento: de como o relatório, por meio do qual em princípio ela buscava visibilidade e emancipação, foi transformado em instrumento normativo de catalogação cientificista do desvio.

Entremeadas ao romance, aparecem, como ilustração, páginas de um exemplar do relatório em que palavras e frases foram rasuradas, como se tivessem sido corrigidas, censuradas. É o documento de um ato de insubordinação e resistência: o apagamento do apagamento.

Contra a corrupção da ideia original, emerge um novo texto, uma nova apropriação, um novo sentido na sintaxe das frases que restam legíveis entre as rasuras. O relato "científico" foi apagado, transformado em "poema", desagravo de uma verdade original cujo sentido excedia e ultrapassava os limites do projeto normativo, classificatório, incapaz de ver a dimensão não binária ou trans dos testemunhos.

O "blackout" também diz respeito a ataques de ausência, lapsos de memória que os psicólogos do Exército americano atribuíram a uma suposta síndrome que teria acometido um batalhão de porto-riquenhos durante a Guerra da Coreia.

O relato que o velho faz ao antigo companheiro mostra a dimensão colonialista do diagnóstico. Ao sair de si, os soldados porto-riquenhos despreparados, torturados pelos superiores americanos, apenas resistiam inconscientemente à opressão: "Dentro do blackout, às vezes eu lembrava, ou revivia, vidas que não eram a minha. Eu estava em outro lugar."

Mais do que revelar algo oculto, os "blackouts" separam o texto da origem, conferindo-lhe outra autoria no tempo da leitura. Eles põem a representação em dúvida, contradizem o texto como expressão de uma identidade ou experiência prévia. E assim expõem, por analogia, o processo dinâmico da literatura, experiência presente, acontecendo ao mesmo tempo que se escreve, ou se risca, e se lê, muitas vezes em contradição com o que se faz passar por origem.

As páginas rasuradas do relatório representam um enigma romanesco. Quem riscou as palavras do texto cientificista, tornando visível o apagamento? É aí que surge o romance.

O recurso à representação edificante, imperativo político e moral, reação narrativa à injustiça e ao apagamento, resgatando fatos e personagens do ostracismo e da distorção da História, também é aventado pelo protagonista ouvinte. Mas da mesma forma como se impõe, a exigência da contranarrativa positiva se esvai pela própria fragilidade. O pensamento positivo não resolve nem dá conta da complexidade trágica dos homens.

O velho explica ao antigo companheiro: "Nem todas as ambiguidades precisam ser resolvidas". É uma aula sobre o real e a representação. Em relação aos fantasmas, por exemplo, ele diz que é possível fingir que eles não existem ou então, simplesmente, ouvi-los. Ouvir os fantasmas é, afinal, o que está por trás da literatura.

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