Bernardo Carvalho

Romancista, autor de 'Nove Noites' e 'Os Substitutos'

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Bernardo Carvalho
Descrição de chapéu Livros

Penso em Kafka e me incomodo com a seriedade de Jon Fosse, Nobel de Literatura

Me pergunto se o autor não é o Beckett ou o Thomas Bernhard de uma época crente, que não pode mais rir de si

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Leio que Jon Fosse, Prêmio Nobel de Literatura de 2023, é herdeiro de Beckett e Thomas Bernhard. Vou procurar o humor em Jon Fosse, mas não o encontro. Talvez o humor seja a falta de humor. Leio que Jon Fosse, que já foi ateu, se converteu ao catolicismo.

É curioso que um escritor que trata de experiências enlevadas, quase místicas, em paisagens nórdicas e sombrias, seja comparado a Beckett e Bernhard, para quem o humor e a ironia serviam de contrapeso aos arrebatamentos da existência e da alma. Penso a certa altura que Fosse pode estar falando de Deus em seu livro "Brancura", recém-lançado pela Fósforo. Talvez não reconhecer o humor seja um sinal dos tempos. Talvez Deus seja a piada.

Jon Fosse em Oslo, Noruega - Hakon Mosvold Larsenvia - 6.set.19/NTB/Reuters

O narrador de "Brancura" sai de casa sozinho, dirigindo a esmo, até atolar na neve, no meio da floresta. Desce do carro à procura de ajuda e acaba se perdendo, enredado contra a sua vontade nesse labirinto romântico de pinheiros. É quando vê uma luz branca que se aproxima sem que ele consiga identificá-la.

A brancura dessa aparição pode querer dizer tudo ou nada. Em Beckett, seria o inominável em oposição à representação e às metáforas. Em Bernhard, motivo de exasperação. Em Fosse, por um momento, temo que seja a figuração da morte, ou a manifestação de Deus, objeto de reverência e mistério.

Quando a criatura branca aparece pela primeira vez, indistinta, ainda acredito que Jon Fosse estivesse tentando escapar às metáforas ao entrar na floresta e fazer seu narrador avistar uma luz. Mas de repente o narrador está falando com o pai e a mãe —são vozes do passado, talvez do além—, tentando encontrar uma saída da floresta, e eu me pergunto se ao se embrenhar nessa paisagem de forte tradição simbólica e mítica, no fundo o narrador não estivesse simplesmente, como seu carro na neve, atolado numa selva de metáforas.

É como se Beckett, ao tentar se desvencilhar do estilo, no fundo o estivesse buscando. Ou como se, ao falar de suicídio, não houvesse ironia e fúria na frase interminável de Thomas Bernhard. "Estou preso contra a minha vontade, no coração da floresta negra, involuntariamente preso por mim mesmo", diz o narrador de Fosse, seguindo a trilha que o afasta de Beckett e Bernhard.

Mesmo a distância e a descrença —o passo atrás do humor em Beckett e Bernhard— são levadas demasiado a sério em Fosse. A dúvida é mística: "Quero que o silêncio permaneça, quero escutar o silêncio. Pois é no silêncio que se pode ouvir a voz de Deus. Foi o que alguém disse um dia, mas não consigo ouvir um único som da voz de Deus, a única coisa que ouço é o nada".

O nada. Me pergunto se não seria possível ler Jon Fosse como o Beckett ou o Thomas Bernhard de uma época crente, que se leva demasiado a sério, não pode mais rir de si porque já não habita o pós-horror, mas o próprio horror, o retorno ao horror. Um lugar impróprio à distância da razão, do humor e da reflexão crítica.

Ao mesmo tempo, alguns indícios levam a crer que as coisas talvez sejam mais complexas sob esse céu baixo e encoberto, no meio da floresta, onde de vez em quando a lua desponta amarela entre as estrelas. O amor é o elemento fundamental do cristianismo (ou assim nos tentaram fazer crer ao longo dos séculos). Quando fala do amor, contudo, o narrador torna-se descrente: "Que quero dizer com essa palavra, pois se há uma palavra que não significa nada é essa".

Não existem pontos de interrogação no texto, mas talvez isso, menos que afirmar que tudo é crença, certeza e asserção, diga apenas que toda asserção também é dúvida. No lugar da ironia e do humor que já não se mostram, surge um texto onde os pontos de interrogação estão ocultos.

"Encontrar o caminho", "sair da floresta", é uma metáfora insistente dessa imobilidade que não pode rir de si mesma, talvez porque busque o arrebatamento diante da morte, em contraposição ao horror. "Achar graça numa circunstância dessas, não, é preciso haver um limite. Mas parece que não há limites. Tudo parece sem limites, é como estar trancado num quarto, em plena floresta, e no entanto esse quarto não tem limites."

E é quando penso em Kafka e começo a me incomodar com o enlevo e a seriedade de Jon Fosse. Desde quando o horror exclui o riso? Desde quando o humor jogou a toalha?

E aí Deus reaparece: "É um pouco como se eu não fosse eu mesmo, mas como se agora fizesse parte da criatura luminosa, [...] sim, o sentido já não existe, porque tudo apenas é", diz o narrador iluminado pela "brancura", por Deus, essa piada involuntária.

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