Jornalista e roteirista, é autora do livro "Almanaque da TV". Escreve para a Rede Globo.
Voltar à feira do rolo me trouxe mais reflexões do que objetos usados
Tudo tinha mudado por lá e uma nuvem cinzenta continua acima de tudo, acima de todos
Já é assinante? Faça seu login
Continue lendo com acesso ilimitado.
Aproveite esta oferta especial:
Oferta Exclusiva
6 meses por R$ 1,90/mês
SOMENTE ESSA SEMANA
ASSINE A FOLHACancele quando quiser
Notícias no momento em que acontecem, newsletters exclusivas e mais de 200 colunas e blogs.
Apoie o jornalismo profissional.
A Feira da Caçamba nem se chama assim, o apelido fui eu que dei. Como todo comércio de sua natureza, existe mundo afora e vende artigos usados. Na gringa, é mercado de pulgas. Aqui, na mais pura informalidade, quando tem nome, em geral é feira do rolo, brique ou —na sua versão mais gaiata— shopping chão.
Senti necessidade de batizar essa feira, em específico, pois fica razoavelmente perto da minha casa e passou a fazer parte da minha vida. "Aonde você vai no fim de semana?" Não queria mantê-la como um não lugar. "Vou à Feira da Caçamba."
A caçamba em si, origem de tudo, surgiu do papo com um dos meus vendedores favoritos, que sempre montava barraquinha com os itens mais surpreendentes. "Rapaz, como você descola isso?" Pois é, ele tinha uma caçamba. "Sempre que alguém faz obra ou morre, é lá que deixam as coisas boas." Quem gosta de fuçar objetos sabe que a emoção está na aventura das descobertas.
Ao contrário das compras funcionais —lençol em loja de lençol, sapato em butique de sapato—, não há como prever os tesouros que encontraremos de segunda mão. Muito menos as conversas, outra delícia para quem faz a economia andar, mas ama garimpar histórias.
Graças a essa arqueologia do acaso, gastei muitos domingos entre mapas antigos, colheres de prata, fotografias de desconhecidos, uma raquete que ganhou espelho e foi para uma parede, além de outros troféus sentimentais que só fazem sentido para mim.
Isso na plena certeza de que as feiras desse tipo são o exemplo mais prático e cacarequeiro da lei do eterno retorno: o que da Caçamba veio, um dia à Caçamba voltará.
Até que eu mesma não voltei, por dois anos. Uma abstinência não só de achados, mas do passeio e das observações de mundo. No último domingo, mesmo com tempo nublado, resolvi regressar —e vi que a Feira da Caçamba tinha mudado.
Agora, são bem mais calçadas ocupadas. Famílias vendendo o que têm em porta-malas de carro. Nas esquinas, jovens negociam manteiga, embutidos e outros produtos de supermercado, enquanto um homem idoso pede ajuda para inteirar o valor de um botijão de gás. Estacionada embaixo do viaduto, uma moto com um capacete verde e amarelo em cima.
No que a chuva despencou, veio o desespero para recolher o que estava pelo chão. Parada diante de uma lona com brinquedinhos do McDonald’s, uma mulher berrava, abraçada a dois meninos. "Vai passar, gente! Calma, vai passar!"
Minutos depois, realmente, parou de respingar —mas uma nuvem cinzenta continua, acima de tudo. Acima de todos.
Receba notícias da Folha
Cadastre-se e escolha quais newsletters gostaria de receber
Ativar newsletters