Bia Braune

Jornalista e roteirista, é autora do livro "Almanaque da TV". Escreve para a Rede Globo.

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Bia Braune
Descrição de chapéu

Na esquina da meca do poliamor, o pão doce cancerígeno era o limite

O semáforo pifado que só dava luz verde autorizava de tudo um pouco dentro do perímetro moral dessa liberalidade suburbana

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Se alguém quiser geolocalizar essa história, depois eu passo as coordenadas exatas. O importante é saber que ela acontecia assim, precisamente na esquina mais incrível do bairro onde nasci. No cruzamento de um sinal de trânsito que, pifado após uma tempestade, só dava luz verde. Como que autorizando de tudo um pouco, dentro do perímetro moral dessa terna liberalidade suburbana.

Antes, é preciso descrever o cenário. Na posição mais elevada, posto que, subindo uma ladeirinha, está a igreja —com suas missas, doações de leite em pó e orações do terço. Consagrada a mãe de Cristo, mas com a barriguinha do G já desaparecendo da fachada, até hoje é conhecida pelo apelido de "Nossa Senhora da Cuia".

Na ilustração de Marcelo Martinez, em estilo cartum, um personagem, trajando equipamento contra radiação completo, segura com a pinça de ferreiro um pão doce – cujo creme é na cor verde-radioativo e está emanando uma forte luz, no mesmo tom, por todo o ambiente da padaria.
Publicada neste domingo, 10 de março de 2022 - Marcelo Martinez

Aliás, falando em cuias, todas que eram utilizadas nas aulas paroquiais de artesanato vinham da loja mais bem estabelecida naquela encruzilhada, a Orixá Dreams: 30 anos no ramo de artigos para umbanda e candomblé.

Sem dispensar uma boa meia hora de papo com o simpático Seu Jacinto, babalorixá e gerente, sisudas beatas compravam ânforas e alguidares a serem pintados e dispostos no móvel principal de suas salas, junto à Bíblia Sagrada.

Point de heterotops avant la lettre, a oficina ficava do lado oposto. Onde rebimbocas da parafuseta e trocas caprichadas de óleo davam origem a piadas de mecânico tão sujas quanto suas estopas, por entre calendários de mulher pelada. Cada parede, um pilar do machismo estrutural.

Isso, que fique claro, até o momento em que a clientela atravessava a rua. Afinal, eram todos bem-vindos ao "Paraíso dos Cornudos", assim apelidado graças ao recalque do quarteirão vizinho, que não alcançava a grandeza do prédio enquanto meca do poliamor.

Segundo as más (e melhores) línguas, bastava interfonar e ninguém mais era de ninguém. Espécie de sodoma vertical e sem preconceitos, viável e operante graças a uma elástica noção de bons costumes.

Se alguém passasse mal em qualquer calçada, logo surgia quem rezasse um pai-nosso ou benzesse com arruda. Maridos, esposas e amantes tomavam conta do filho alheio, que poderia ser o seu mesmo.

E, quando o padre precisava de auxílio na procissão, um chevette surgia para levar o andor de Nossa Senhora. Só pelo amor de Deus: antes, tira a revista "Ele e Ela" malocada no porta-luvas.

Mais do que uma esquina, era uma comunhão quase perfeita —desde que não se comesse o creme do pão doce da confeitaria. "Aí, não... Tá comprovado, gente. Dá câncer!" Diziam, categóricos. "Na vida é preciso ter limites."

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