Jornalista e roteirista, é autora do livro "Almanaque da TV". Escreve para a Rede Globo.
Só as playlists sobreviverão à extinção em massa das mídias e ao caos do amor
Abrir os trabalhos de uma lista é escancarar um diálogo que não se daria com nossas próprias palavras
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Poderiam ter virado porta-copos. Ou ido parar no saco preto implacável das faxinas sentimentais —mas não. De última hora, reparei em suas meigas capinhas, daí tive clemência.
Numa delas, me reconheci na foto com flor no cabelo. Na outra, bem fã-clube adolescente, o conteúdo já se entregava pelos corações desenhados a canetinha. Perdidos na memória, porém recuperados de uma caixa na prateleira mais alta do armário, não havia dúvidas quanto à natureza daqueles objetos. Feito mensagens de alienígenas do passado, eram CDs com playlists.
Cronologicamente, não vivi as fitas cassetes gravadas do rádio, com caligrafia miúda indicando lados A e B. Meus tormentos musicais juvenis já foram mixados no tempo das baixarias virtuais. Napster, Kazaa, eMule, éramos piratas praticando a pilhagem de canções e corações, como poderia constar numa letra do Roupa Nova.
Quem não é de fazer playlists certamente já filou as alheias. Sobretudo digitalmente, conforme as plataformas de hoje permitem. Há os que criam seleções para ouvir fazendo esteira, lavando louça e passeando com cachorro. Contudo, prefiro me deter nas trilhas da sofreguidão, ao estilo da "Alta Fidelidade" do escritor Nick Hornby. "Eu ouvia música pop porque era infeliz ou era infeliz porque ouvia música pop?"
Abrir os trabalhos de uma playlist —para alguém ou com alguém— é praticar uma sutil curadoria, escancarando um diálogo que não se daria com nossas próprias palavras. E isso não sou eu quem está dizendo —é a Elis, o Jorge Drexler, o Elvis (Presley, Costello) e o R.E.M. Nosso sentimento todinho ao alcance de um clique. Compartilhável feito um link.
Algumas ficam lá, perdidas no celular de um ouvinte com pouca escuta. "Apenas uma playlist", reproduzida quiçá uma única vez. Outras contam histórias mais longas, sendo revisitadas com uma nostalgia e uma frequência que nem sempre conseguimos admitir.
Dirigindo na estrada, ao som de Dolores Duran e Tom Jobim. Ou espichada no lado vazio do sofá, com novos hits da semana, chego à conclusão de que não importa a crença ou gosto musical: apenas playlists sobreviverão a tudo. Ao tédio. À extinção em massa das mídias. Às quintas em que não ligo para você. Ao caos e à destruição do amor.
Até porque, mesmo que a gente desista de vez, basta ouvir uns primeiros acordes pensando em outro alguém e, pronto, sai da minha frente que elas voltam a existir. Analógicas, mas já reverberando no peito. Lalalás depois do fim, para recomeçar.
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