Bia Braune

Jornalista e roteirista, é autora do livro "Almanaque da TV". Escreve para a Rede Globo.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Bia Braune
Descrição de chapéu

Clichês de novela somem na era do suborno por Pix e da humilhação no Instagram

Tentando arrombar uma fechadura com um grampo de cabelo, constatei que alguns dos meus favoritos já sumiram

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

"Foi bom para você?" "Não é nada disso que você está pensando!" "É grave, doutor?" "Eu sou... Sua verdadeira mãe." Aí entraria música de climão, tcharan, e pronto. Na sala de espera do dentista. No cafezinho da firma. Na seção de frios do mercado. Ou em qualquer canto da vida real, pois sempre imaginei como seria manter diálogos e agir conforme clichês de novela.

Em maior ou menor grau, todo espectador coleciona esses tijolinhos de repetição que servem de calço para a maioria das tramas. Como não amar, por exemplo, cena de café da manhã luxuoso com personagem apressado que só pega uma uvinha e sai? Ou que abre a porta e pergunta "você???", mesmo havendo interfone e porteiro lá embaixo.

Na colagem de Marcelo Martinez, uma padronagem formada por aparelhos de televisão antigos e fora do ar, exibindo o chiado de estática. Apenas um deles, no canto esquerdo inferior, tem uma imagem colorida em sua tela.
Publicada neste domingo, 10 de julho de 2022 - Marcelo Martinez

No meu trabalho mais recente como roteirista, precisei imaginar o que aconteceria se as novelas desaparecessem da nossa memória. Porém, foi tentando arrombar uma fechadura com um grampo de cabelo que constatei: alguns dos meus clichês favoritos já começaram a sumir.

Não é à toa que certas tradições noveleiras minguam. Antes, quando vilã pegava o cheque, a única pergunta para a mocinha era: "Quanto você quer para sair da vida do meu filho?". Agora, são várias etapas até o que interessa. "Aceita Pix? Qual é a chave? CPF, CNPJ, telefone ou email? Chegou o comprovante?" Na falta de glamour, pelo menos o suborno cai rápido na conta.

O velho truque do lenço embebido em clorofórmio, quem diria, foi atualizado como "golpe do perfume" entre passageiras indefesas de facínoras do Uber. Ladrão usando estetoscópio para decifrar senha de cofre, fala sério. Quem tem ainda dinheiro sobrando para guardar em casa, com inflação acumulada a 12%? E simular febre esquentando termômetro na lâmpada também não dá, pois hoje em dia são todas de LED.

Quanto ao sumiço dos negativos, ah, que saudade dessa chantagem braba. Esquece o tal do pen drive de "Avenida Brasil". O que é ter um punhado de fotos comprometedoras passando de mão em mão perto da humilhação suprema que é ser marcada com queixo duplo, em poses esdrúxulas no Instagram alheio?

A verdade, escrita com batom num espelho, é que os clichês não precisam de nós, amantes de clichês. Uma seleção natural tratou de agir sobre eles. E digo mais: ao terminar este texto, ainda existe a chance de um coco cair na sua cabeça, gerando uma típica amnésia de novela das sete. "Quem sou eu? Onde estou? Que coluna estava lendo mesmo? A do Pondé?" Deixa pra lá, vambora. "Siga aquele táxi!"

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.