Jornalista e roteirista, é autora do livro "Almanaque da TV". Escreve para a Rede Globo.
Ninguém te ama, ninguém te quer, ninguém te chama de 'fala, camundongão'
Chamar anônimos por termos deliciosamente aleatórios é o que constitui a verdadeira sociedade civil
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O garçom está de costas. Bem como o guarda, o atendente, a senhora do caixa e a vendedora que, ocupada ou distraída, conversa com uma colega enquanto você precisa de ajuda. Não há como ler crachás, nem levantar bracinhos. O ambiente é ensurdecedor. Você precisa, sim, de um aceno em forma de palavra. Qual?
"Hmmm, depende. A ‘madrinha’ quer ir para onde?", perguntou o taxista simpaticão assim que embarquei. Referia-se ao caminho com menos trânsito, mas foi exemplo perfeito do que acontece quando aguço meus ouvidos e coleciono vocativos.
Eu poderia ser bastante teórica aqui, discorrendo junto a "ô moços" e "moças" sobre significantes e significados, mas passemos à conversinha fiada. Chamar anônimos por termos deliciosamente aleatórios é o que constitui a verdadeira sociedade civil – ou pelo menos era isso que eu pensava.
Numa enquete promovida pelo instituto Data Eu Mesma, assuntei "queridões" de norte a sul do país. E por entre gente despachada e introvertida, conversadora e caladona, boêmia e fóbica social, coletei dados que vão de "bom dia, abençoada" a "e aí, arrombado?" numa virada de esquina.
"Amigo", "amiga", "amigão" e "irmão" são familiares a todos, aparecendo aqui e acolá um "valeu, paizão!". "Mestre", "chefe", "chefia" e "diga aí, diretor!" também bateram ponto, em geral não aplicados a quem está no comando. Vocativo maroto tende a ser mais lúdico e desconectado da realidade, vide o tanto de pós-jovens que registrei carinhosamente referenciados como "a senhorita" e "fala, moleque".
Para toques de realeza, "meu príncipe". De riqueza, "minha joia". "Meu anjo" enquanto imagem de "genteboíce" blasfema. "Um amigo meu só chama garçom de Amadeu". Anotei. "Aprendi com Luis Fernando Verissimo a chamar pela profissão, ele usa ‘garçom’ mesmo". Invejei, pois Verissimo pode chamar qualquer um de qualquer coisa. Menções honrosas a "camundongão", "dom" e "vereador". Num total de zero "psius".
O saldo final, porém, me surpreendeu. A maioria dos "meus bons" apenas cala. "Chego perto e pronto." "Não chamo de nada, não." Amargurada, me lembrei do compositor Antônio Maria, autor de "ninguém me ama/ ninguém me quer/ ninguém me chama de meu amor" —justamente, meu vocativo predileto.
Nada me conforta mais do que assistir a completos desconhecidos, em atos de gentileza gratuita, abrindo uma nesga de intimidade descartável e absoluta, por poucos segundos. Essa é a engrenagem social na qual acredito. "Vai levar, meu amor?" Vou, sim. Pela vida toda.
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