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Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e membro do Observatório Pesquisa, Ciência e Liberdade - SBPC

Descrição de chapéu Folhajus congresso nacional

Reformar para autocratizar

A reforma administrativa desmoderniza a burocracia e embrutece o Estado

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A magistocracia nunca perde. Esse enunciado irrevogável da história brasileira serviria de título para obras clássicas de interpretações do Brasil. Mas Gilberto Freyre gostou mais da poesia de "Casa-Grande e Senzala", Sérgio Buarque optou pelo pomposo "Raízes do Brasil", Raymundo Faoro preferiu o sisudo "Os Donos do Poder".

Poderiam ter ido direto ao ponto: a magistocracia nunca perde. Mais didático que "o estamento burocrático, fundado no sistema patrimonial do capitalismo politicamente orientado, adquiriu o conteúdo aristocrático, da nobreza da toga e do título".

Mais conciso que "debaixo do jogo político, vela uma camada político-social, o conhecido e tenaz estamento burocrático, nas suas expansões e nos seus longos dedos".

Na reforma administrativa em curso no Congresso (PEC 32), as "expansões e longos dedos" da magistocracia já garantiram que seu patrimônio pré-moderno fique intocado.

A cúpula perdulária e autoritária dos agentes públicos do Estado, formada por juízes, promotores e congêneres, nada perde de seu pacote de aberrações: férias de 60 dias para dar e vender (fora recessos); benefícios indenizatórios e livres de impostos (até retroativos); aposentadoria compulsória como pena máxima por delinquência funcional etc.

No lugar onde prosperam as anomalias mais graves do Estado, a reforma administrativa faz quase nada. Os estigmas de senso comum contra o funcionalismo público cobram seu preço da base dos servidores, nunca da cúpula. Essa malandragem do reformismo cínico, que não conserta problema estrutural e faz mudança cosmética, é a tônica da reforma que Arthur Lira acelera e sonega do escrutínio público.

A partir do diagnóstico de barbearia hipster como "o Estado custa muito, mas entrega pouco" e tem "estrutura pouco flexível"; de princípios anódinos como "foco em servir, valorização das pessoas e eficiência"; e pretensões tão malandras quanto "modernizar o Estado, aproximar o serviço público da realidade, garantir condições orçamentárias", a PEC 32 caminha na direção contrária.

Proteger brioches antirrepublicanos no topo do Estado, firmar "regime de castas funcionais" e selecionar "carreiras privilegiadas" que abram caminho para um "Estado policial", como dizem Carlos Ari Sundfeld, Arminio Fraga e Ana Carla Abrão, não esgotam os defeitos da reforma.

A PEC rompe o dispositivo mais elementar de uma burocracia técnica: a estabilidade contra a intimidação política. "Contratos temporários" e "terceirizações de serviços", sem critérios, abrem avenida para a captura.

Além de embrutecer, a reforma "politiza a máquina e pode piorar qualidade dos serviços", como aponta Gabriela Lotta, das maiores estudiosas do tema. Ainda vende desinformação quando celebra "avaliação de desempenho", instrumento já exigido pela Constituição e não aplicado por simples conveniência fisiológica.

A administração pública brasileira tem imperfeições diversas e focos potenciais para a boa reforma. A contrarreforma na mesa não as enfrentou. Sequer as tocou.

Seus reflexos na administração podem se resumir assim: menos Estado, mais sectarismo partidário; menos autonomia, mais compadrio; menos accountability, mais corrupção; menos expertise, mais amadorismo; menos capacidade estatal, mais improviso; menos autoridade jurídica, mais submissão personalista; menos impessoalidade e moralidade, mais clientelismo; menos interesse público, mais poder privado; menos governo das leis, mais governo do centrão. Em vez de "rule of law, not of men", criamos o "rule of centrão, not of law".

Algumas de suas consequências na política pública são: menos educação pública, mais ensino para poucos; menos liberdade acadêmica, mais vigilância milicartista; menos medicina, mais Prevent Seniors, Pazuellos e Queirogas; menos médicos, mais charlatões pela "autonomia médica"; menos vacinas, mais cloroquina na boca e ozônio no reto.

O diabo contrarreformista mora no ilusionismo jurídico e na desfaçatez política. A PEC invoca princípios constitucionais cor-de-rosa e cria obstáculos intransponíveis a sua viabilidade prática. No lugar de burocracia moderna, competente e democrática, oferece gestão patrimonialista de interesses corporativos. Almeja Estado a soldo do ganho privado, o oposto da eficiência pública. Expande a lógica da rachadinha e ainda facilita a ambição do autocrata.

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