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Psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem (Papirus). Morreu em 2021.

Bolsonaro ficará na história cultural do Brasil junto de Jeca Tatu e Macunaíma

Presidente é a explicação e o protótipo do brasileiro de 'Raízes do Brasil', livro de Sérgio Buarque de Holanda

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Domingo, na rampa do Palácio do Planalto, o presidente Bolsonaro declarou: “Vocês sabem que o povo está conosco. As Forças Armadas, ao lado da lei, da ordem, da democracia, da liberdade, também estão ao nosso lado”.

A frase me jogou de volta para a impressão inicial de estranheza de quando cheguei ao Brasil, nos anos 1980.

“O povo está conosco” parecia mesmo de outras épocas, em que fascistas e comunistas discutiam para saber quem era o povo e com quem ele estava. As cabeças pensantes, fascistas e comunistas, aliás, invocavam “o povo”, mas sabiam que a massa é “estúpida, servil e covarde” —palavras do historiador antifascista Gaetano Salvemini em 1935, que poderiam ser de Mussolini.

Mas o choque veio depois, com “as Forças Armadas estão ao nosso lado”. Certo, há vários lugares no mundo em que um governo invocaria as Forças Armadas como sustento de sua legitimidade, mas não na Europa nem na América anglo-saxã.

Estranha-me sobretudo não ter percebido antes que qualquer referência às Forças Armadas num discurso político é um achado etnográfico, sinal de uma parada temporal no limiar da modernidade.

Por misericórdia, no dia seguinte, o ministro da Defesa, o general Fernando Azevedo e Silva, lembrou que as Forças Armadas são “uma instituição de Estado”, ou seja, elas não servem um governo ou outro.

As Forças Armadas estarem do lado do governo seria como se os Correios, a partir de agora, não entregassem mais as encomendas de quem pensa diferente do presidente.

Ou então como se médicos e enfermeiros do SUS se declarassem de oposição e parassem de atender bolsonaristas. Cá entre nós, não seria uma má ideia no caso do casal de mentecaptos paramentados de bandeiras que, em Brasília, no dia 1º de maio, agrediu enfermeiros que faziam uma homenagem silenciosa às centenas de colegas vítimas da Covid-19.

Aparte: eu, como cidadão dos Estados Unidos, penso que deve ser permitido fazer tudo com a bandeira nacional, inclusive queimá-la em público. Mesmo assim, ultimamente, seria bom maneirar no uso da bandeira brasileira, antes que ela se torne uma espécie de símbolo da boçalidade.

Mas volto à fala do presidente. Ela me surpreendeu porque eu achava que o Brasil estivesse lentamente se modernizando. E a fala me acordou: nada disso, estamos ainda na América Latina de Macondo, e não é uma ficção.

Alguém estava ao lado do presidente com uma bandeira israelense e uma dos EUA. Só podia ser um desavisado —nenhum político israelense ou americano, democrata ou republicano, confundiria seu governo com o Estado e invocaria o suporte das Forças Armadas.

Essa invocação apenas acontece em culturas que só conseguem estabelecer uma legitimidade no braço.

Enfim, o presidente do Brasil, sustentando sua autoridade na ameaça e nas forças, e junto dele os 25% ou 30% de “povo” que não acham bizarros os “pronunciamentos” dele são uma anomalia?

Nem um pouco. A frase de Bolsonaro tem a mesma origem da resposta dele quando foi observado que seu candidato a diretor da Polícia Federal era amigo da família. “Devo escolher alguém amigo de quem?” Não lhe ocorreu que se trataria de escolher alguém não por ser amigo de quem quer que seja, mas por ser isento. Ou então, quando acharam curiosa a escolha do filho dele como embaixador nos EUA: “se puder dar um filé para meu filho, eu dou” e “indicado para embaixada tem que ser filho de alguém, por que não meu?”. Não lhe ocorreu que, para escolher embaixador, a competência contaria mais do que os ascendentes.

Mas, cuidado, se Bolsonaro desconhece e nem sequer entende os princípios básicos da convivência republicana, não é porque ele seria um monstro antidemocrático. É simplesmente por ele ser, pasme, brasileiro.

Quer entender quem é nosso presidente? Releia “Raízes do Brasil” (Cia. das Letras), urgente.

O Brasil e o brasileiro descritos por Sérgio Buarque de Holanda em 1936 continuam valendo (para um 30% no mínimo).

A autoridade se funda na força. Não quero nem saber o que fazem ou fizeram meus filhos: o privado (a família) é muito mais importante do que o público (o Estado). Ou seja, a modernidade brasileira é ainda um projeto.

Bolsonaro ficará na história cultural do Brasil junto de Jeca Tatu e Macunaíma; ele é a explicação e o protótipo do brasileiro de “Raízes do Brasil”: o coração e a bile antes da razão, os amigos e a família antes do país e a violência acima de tudo, legitimando o poder.

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