Contardo Calligaris

Psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem (Papirus). Morreu em 2021.

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Contardo Calligaris
Descrição de chapéu Coronavírus

Em meio à pandemia, governo Bolsonaro mente e piora situação

A mentira ajuda seu projeto de poder?

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Foi o baile das máscaras.

Começou com o próprio Ministério da Saúde nos dizendo que a máscara protetora só precisava ser usada por pessoas infectadas. Qualquer outro uso seria o quê? Paranoide? Ridículo?

Ilustração de Curupira sentado com o tronco apoiada nos braços que estão posicionados para trás. Ele está com um charuto em uma das mãos e expirando fumaça.
Luciano Salles/Folhapress

A mensagem contaminou a própria imprensa, a qual adotou a mentira do governo, em vez de se perguntar se ela fazia sentido.

Cansei de ver fotografias de pessoas circulando de máscara pelas ruas de nossas cidades, sempre acompanhadas de uma legenda que parecia uma condenação moral do passeante: “Pessoas circulam pela avenida etc. (o uso da máscara é reservado aos infectados e ao pessoal da saúde)”.

Fala sério. E olhe ao redor, mundo afora. Não é preciso ser infectologista, biólogo ou engenheiro para entender que a máscara protege qualquer um de uma parte, ao menos, de gotículas e microgotículas que ficam no ar o tempo suficiente para serem respiradas e que podem estar carregadas de vírus.

Tampouco é preciso, para isso, que a Organização Mundial da Saúde ou sei lá quem se pronuncie e me autorize, certo?

De qualquer forma, o ministério mudou de ideia. Agora até lenço de vaqueiro galopando na poeira já ajuda. O que foi? Será que o ministro recebeu o resultado de uma grande pesquisa que prova o contrário do que ele dizia antes?

Não, o ministro sempre soube. Apenas queria evitar que as classes médias estocassem máscaras, com a consequência de que elas faltariam para quem mais precisa (o pessoal da saúde). A intenção dele era ótima e justa, mas por que mentir? Por que tratar a gente como crianças pequenas para quem não seria bom contar a verdade porque elas não entenderiam?

Entendo que o momento trágico seja aproveitado por todos os urubus do poder —que são os indivíduos que não se importam em pisar em cadáveres para subir na vida e na hierarquia. Ou seja, entendo que um debate do qual dependem dezenas ou centenas de milhares de vidas possa ser atravessado por considerações políticas que desprezam a questão que importa (que são as tais vidas, por exemplo). Entendo, digo, embora com antipatia e uma ponta de desprezo.

Agora, acontece que, nesse embate político, uma grande vítima (a primeira?) é a verdade. Ou seja, o resultado é que todos, seja qual for seu lado na disputa, mentem para nós.


A ponto que me pergunto se o que a psicanálise deveria explicar é a vontade de potência (ou de poder) em todos nós ou quase, ou então a vontade e algum prazer perverso de mentir aos outros —também em todos ou quase. Sei que parece um pouco paradoxal, mas a pergunta é: as pessoas mentem porque a mentira ajuda seu projeto de poder? Ou perseguem um projeto de poder para ter um bom pretexto para mentir?

Em vez da vontade de potência, haveria então a vontade (e o prazer) de fazer o outro de trouxa ou de mantê-lo para sempre num estado de menor crédulo e, por isso mesmo, tutelado. Seria uma espécie de vingança da criança que fomos.

Mentiram para mim? Pois é, agora é minha vez.

Talvez fosse possível explicar assim a desconfiança atual pela política em geral. É uma espécie de cansaço dos trouxas (ou seja, da gente).

Talvez se entendesse assim o sucesso de populistas que parecem falar as famosas quatro verdades.

Todos gostaríamos que, por uma vez, quem nos fala tivesse a coragem da verdade. É inesquecível o discurso inaugural de Churchill em 1940, oferecendo ao Parlamento e aos ingleses “sangue, trabalho, lágrimas e suor”.

A mentira se tornou um elemento tão básico da estratégia política que nós, na escuta, mal conseguimos entrever a verdade. Exemplos?

Bolsonaro é contra o confinamento porque o acha inútil ou porque há grandes varejistas entre seus apoiadores, e estes querem que a gente volte logo às compras?

Mandetta, que na terça (7) liberou a hidroxicloroquina, era contra porque não acreditava em sua eficácia ou porque era Bolsonaro que defendia seu uso?

Também, há dois dias, foi repercutida na imprensa uma pesquisa da Fiocruz segundo a qual a taxa de mortes seria a mesma com ou sem cloroquina. Mas a questão já não era essa havia mais de uma semana: o que se discute hoje é a eficácia do remédio se ele for administrado a pacientes no segundo dia dos primeiros sintomas. De novo, Mandetta receava que fosse tóxico? Ou receava que um achado positivo fosse capitalizado por Bolsonaro?

E David Uip, tomou cloroquina em que dia de sua doença? Por que razão os trouxas de sempre não mereceriam saber?

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