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Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais.

Fantasmas que assombram o Brasil continuam berrando em nossos ouvidos

Ecos atormentarão brasileiros enquanto houver histórias mal resolvidas e negligenciadas

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Em 2018, estive em Berlim a convite da Bienal de arte para comparecer às exposições que tiveram como curadores o brasileiro Thiago de Paula Souza e a sul-africana Gabi Ngcobo.

Foi delicioso, um refresco em meio aos compromissos do Brasil, que descia a ladeira na década promissora que terminou de forma lamentável, para dizer o mínimo.

Na mostra principal, tomei contato com a exposição “Illusions”, de Grada Kilomba, que um ano mais tarde faria um sucesso estrondoso no Brasil com seu livro “Memórias da Plantação: Episódios de Racismo Cotidiano” (editora Cobogó).

Estava animada: estudei a obra de Kilomba para a dissertação de mestrado e havia feito, para a CartaCapital, uma entrevista com ela numa passagem pelo Brasil em 2016.

É uma brilhante pensadora que conta com minha admiração e muito me ensina. A entrevista está em meu livro “Quem Tem Medo do Feminismo Negro?” (Companhia das Letras).

Em “Illusions”, Kilomba reinterpreta mitos gregos por uma perspectiva anticolonial. Um trabalho fascinante, sobre o qual já escrevi nesta Folha. Na reinterpretação a que assisti, a artista tratava de Édipo, um mito que somente é possível para o grupo racial branco, como nos antecipou pensadores como Frantz Fanon.

Grupos historicamente escravizados não lidam com a necessidade de matar o pai.

Entre outros fatores, é incomum haver pai vivo ou presente —grupos vulnerabilizados foram submetidos a trabalhos extenuantes ou retirados do convívio social por encarceramento, internação manicomial, entre outros. Ainda que não haja nada disso, mesmo assim o inimigo em face do convívio social é o grupo hegemônico.

Um ano mais tarde, encontrei-a na apresentação de “Illusions” na Pinacoteca de São Paulo. A convite do querido Jochen Volz, curador da Pinacoteca, tivemos uma tarde na qual pude aprender muito.

A artista contava a história de Narciso, mito muito interessante para pensar o grupo racial branco, como já nos mostrou Cida Bento quando escreveu sobre o pacto narcísico da branquitude, pacto silencioso entre pessoas brancas que se premiam, se aplaudem, se protegem e boicotam a diferença da imagem do colonizador.

Kilomba nos apresenta em sua análise a figura de Eco, a ninfa apaixonada pelo jovem caçador e amaldiçoada a repetir suas últimas palavras. Inspirada na pensadora, farei um exercício com vocês para identificar alguns ecos da voz de Narciso na sociedade brasileira e quem os entoa.

Ilustração de Aline Souza para coluna de Djamila Ribeiro publicada em 26 de fevereiro de 2021, na Folha de S.Paulo - Aline Souza

Os ecos são entoados como reprodução fragmentada de uma frase e se manifestam várias vezes. Ao trabalharmos o exercício olhando para a história do país, nos depararemos com desigualdades estruturais que se perpetuam, saqueamentos do meio ambiente e processos de neocolonização.

Na primeira vez que escrevi nesta Folha, falei sobre o pacto da mediocridade, uma consequência do narcisismo branco brasileiro. Escrevi que o dilema do país era continuar medíocre em todas as áreas, enquanto privilegiasse um grupo racial. É um dilema para um país em que grande parte do pouco que se orgulha foi construção da população negra e indígena, escorraçadas para as margens do banquete branco.

Certa vez ouvi de Kilomba que a escravidão e o colonialismo, enquanto histórias mal resolvidas, funcionam como fantasmas. Em certa tradição, fantasmas são espíritos errantes com fim traumático e
que ficaram presos ao plano terreno perturbando e assombrando ambientes. Não nos interessa debate sobre os fantasmas em si, mas sim a metáfora.

E quantos fantasmas assombram o Brasil, não? Chegamos em 2021 e temos um governo que assombra por sua incompetência, aliado ao projeto de perseguição a indígenas e quilombolas, repleto de militares e latifundiários. Fantasmas que seguem nos assombrando.

O país que não resolveu sua ditadura sanguinária, um lugar cujo próprio Supremo impediu que qualquer militar de alta patente fosse julgado pelos crimes do regime. Os fantasmas recentes ecoam os gritos dos porões dos quartéis.

Já fantasmas tão velhos quanto às caravelas seguem ecoando em um país construído em cima de mais de 300 anos de escravidão, sendo ela a base da economia que pauperizou a população negra sequestrada e seus descendentes.

Os ecos vão desde a África, passam pelo navio negreiro, pelo porto onde seus dentes e canelas eram avaliados, pelas plantações e chibatas, pelas sirenes das viaturas, pelas vassouras do trabalho doméstico.

São ecos que continuarão a assombrar, enquanto o país não enfrentar seus fantasmas.

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