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Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais.

'The Underground Railroad' retrata resistência negra de maneira brilhante

Seriado foge de clichê das recriações cinematográficas da escravidão, que apelam para a violência

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Foram vários os sentimentos que me atravessaram durante os dez episódios da excelente série “The Underground Railroad”, disponível na plataforma de vídeos da Amazon. Fui procurar depois que David Wilson, um querido irmão, me indicou. Não fosse sua indicação, provavelmente não a veria, pois recriações cinematográficas da escravidão exploram uma violência por si só, exibem negros e negras sofrendo como foco central.

Trata-se de uma prática internacional, porém, no Brasil, país da romantização da escravidão, assistir a enredos dessa natureza nos tornou, vamos dizer assim, traumatizados com tanta produção sem respeito à resistência e aos saberes das populações negras.

Imagina o tanto de história neste país que merece ser contada devidamente, da capoeira ao samba, das revoltas ao candomblé. Infelizmente, exceção feita aqui e acolá, estamos muito aquém do que poderíamos, por motivos que sabemos muito bem, mas que não vêm ao caso neste texto.

Isso porque, quando uma produção é excepcional, ela precisa ser exaltada. No enredo, está a história de Cora, vivida pela atriz sul-africana Thuso Mbedu. Ao ver uma cena em que brancos faziam uma ceia sob música e risos ao lado de um homem negro brutalizado, ela decide fugir com seu companheiro Caesar, vivido pelo ator Aaron Pierre.

Na fuga da monocultura do estado da Georgia, Cora e Caesar chegam à Underground Railroad, uma ficção que traz um trem subterrâneo que os leva de estado a outro com dignidade. Para entrar no trem, o “preço” da entrada é contar a história em um grande livro.

Publicada nesta quinta-feira, 5 de agosto de 2021 - Linoca Souza/Folhapress

A cena me fez refletir sobre a importância de pessoas negras contarem suas próprias histórias, pois o sistema colonial e pós-colonial funciona por meio da invisibilidade desses grupos. A invisibilidade é uma morte em vida, como já nos disse Azoilda Trindade, e se duplica no fim da vida.

É chegando a cada estado que Cora vai se deparar com as mais variadas formas de dinâmicas sociais do racismo. Um olhar mais atento vai perceber que não se trata de uma série de época tão somente, mas que recria relações que pessoas negras experienciam na contemporaneidade. Na primeira cidade, há um cenário mais humanizado, e as pessoas negras “até têm certos direitos”, desde que não reclamem muito ou queiram ocupar lugares que não são seus.

Já em outra, pessoas negras são proibidas de existir e aquelas que são encontradas são mortas em um altar. Cora encontra um homem branco decente que a leva para ficar escondida em um porão com uma criança negra, a quem se afeiçoa. Uma de suas algozes naquele episódio, além de toda a comunidade “sangue branco puro”, é a empregada doméstica de origem irlandesa, que não é branca como os patrões brancos, posto que imigrante, mas é branca suficiente para servir no lugar da população negra perseguida.

O ódio da empregada branca às meninas negras nos leva a reflexões sobre a construção da subjetividade das pessoas pertencentes a esses grupos sociais.

Na trilha da escravizada está o caçador de escravos Ridgeway, um homem branco que anda na companhia de Homer, uma criança negra retinta que o segue fielmente em qualquer circunstância. Imagino que a criança negra vá despertar mais inconformidade do que qualquer outro, uma vez que, por ser negra, logo deveria ser parceira daquela mulher perseguida pelo sistema escravocrata.

Porém, como já disse algumas vezes, pessoas negras são múltiplas. Existem aquelas que têm a consciência racial formada em prol do fortalecimento da comunidade negra, existem outras que vivem suas vidas sem ser militantes, como existem também quem viva para servir a sistemas voltados à destruição e subordinação de seus pares, além de infinitas possibilidades. A diversidade não é um atributo exclusivo da branquitude, tanto que existem os brancos feitores, como também aqueles que se indignam e “traem” a sua raça.

Estou pincelando apenas alguma cena ou outra, porque há muito mais a ser dito. Em uma outra cidade, em uma comunidade negra, somos levados a refletir sobre como a liderança negra confiante irrita a comunidade branca, que prefere prejudicar a si mesma e a seus negócios, a aceitar que a comunidade negra decida seus rumos. A situação leva a um discurso final poderoso que merece ser visto e revisto.

A narrativa negra ancestral permeia toda a série, aquela ancestralidade que vem de muito longe e que, mesmo em condições mais adversas, se mostra presente nos segurando na mão e abrindo a porta quando todas pareciam fechadas, como é o exemplo da última cena.

Não sei se Barry Jenkins, diretor da série, que também assinou trabalhos monumentais como a obra-prima “Moonlight”, conhece Ogum, mas há muito do orixá que, como diz Rodney William, abre caminhos onde não há caminhos, nessa série que retrata de maneira brilhante a resistência do povo negro.

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