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Atriz e roteirista, autora de “Fim” e “A Glória e Seu Cortejo de Horrores”.

Descrição de chapéu Coronavírus

Sigo na esperança de que esse horror nos una, mas aguardo um milagre

Na semana passada, tive a infelicidade de ver um artigo que escrevi aqui, neste espaço, virar alvo das redes insociáveis

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Tem sido assim. Três da madrugada, desperto de um sono sem sonho e a cabeça dá de girar.

Colapso hospitalar, econômico e político; violência, desabastecimento e caos social. O alarmante contágio das comunidades carentes. Mortes em série, de familiares, de amigos, de quem nunca vi, morte, morte, morte... Espanto a sinistrose com um gole d’água e evoco Morfeu.

Acordo cedo, de vez, para as ações práticas do dia. Lavar os pratos, as roupas, a cozinha e os banheiros; trocar o lixo, regar as plantas, higienizar tudo o que vem de fora. Malhar e cuidar das crianças. Bordo calendários no estilo Nise da Silveira e tiro “Don’t Fence Me In”, do Cole Porter, no piano. Canto para espantar a desgraça.

As mensagens bem-humoradas de WhatsApp perderam a graça. Os “kkkkks” cederam lugar às vaquinhas virtuais. Do pipoqueiro do colégio dos filhos à Central Única das Favelas; dos trabalhadores informais que conheço aos asilos de idosos, as contribuições dominam as tarefas online.

Faz três semanas que não cumprimento ninguém com um beijo e um abraço. A última vez foi no dia 8 de março.

Era um domingo, fui almoçar com a família e estranhei o restaurante lotado. Cena rara, na atual falência do Rio de Janeiro. Havia um frenesi no salão, um pós-Carnaval algo histérico. Era o Baile da Ilha Fiscal.

Encontramos um casal de amigos que amamos. Já almoçados, os dois se encaminhavam para a saída. Nos levantamos efusivos, como ainda se fazia naquele tempo, e trocamos fluidos saudosos. Quatro dias depois, recebi o aviso de que ambos haviam caído de cama com a Covid-19 e que deveríamos nos isolar.

Os funcionários de casa já estavam em vias de serem dispensados, a notícia apressou os trâmites. Eu e meu irmão combinamos com os rebentos uma quarentena sem negociação, para podermos rever nossa mãe.

Ela encarou os 14 dias sozinha. Nos víamos pela janela dos prédios vizinhos, entre os panelaços e os urubus da floresta dos fundos. O tempo lento a se arrastar. O casal de amigos se recuperou, depois do túnel penoso da enfermidade.

Ambos contraíram a doença num camarote da Sapucaí repleto de turistas chineses. Em Nova Orleans, o Mardi Gras ajudou a alastrar o vírus, mas pouco se fala dos efeitos do Carnaval no Brasil.

Os primeiros casos parecem estar relacionados a pessoas que viajaram para o exterior e retornaram infectadas. Mas, quando lembro da folia deste ano, das ruas lotadas e dos italianos da van que me levou ao desfile, penso que o mal circulou por aqui bem antes da chegada dos brasileiros pródigos.

Quando informei meu clínico que havia tido contato direto com pessoas infectadas, ele respondeu que o número de contaminados é muito maior do que o registrado. Eu já deveria ter abraçado e beijado muito o coronavírus sem nem sequer me dar conta.

Leio pouco e não escrevo. Parei de decorar o “Adão e Eva” que estrearia no teatro em julho. Não haverá teatro tão cedo, nem cinema e nem concertos. É preciso esperar até que a tão desmerecida ciência freie o micróbio com remédio ou vacina. Levará um ano, no mínimo, para retomarmos algum sentido de normalidade.

Não projeto o futuro. Não há futuro imaginável. E há um certo mistério nessa vida sem planos, nesses dias que não são mais do que dias.

Na semana passada, somada à expectativa indigesta do que virá, tive a infelicidade de ver um artigo que escrevi aqui, neste espaço, virar alvo das redes insociáveis.

Era um texto sobre a peste negra, que terminava falando das transformações ocorridas na Europa trecentista, depois de passada a tragédia. Em nenhum momento tratei a calamidade como algo benquisto.

Não costumo postar o que publico na Folha. Aprendi a cultivar leitores sem pretensões de milhares ou milhões. Essa crônica, no entanto, foi replicada por quem viu valor nela e acabou chamando atenção de grupos dedicados a agredir, distorcer e ameaçar online.

Os “fake posts” afirmavam que eu torcia para que o vírus matasse multidões.

Entre os xingamentos, havia o de um homem que desejava que eu e minha mãe morrêssemos com a Covid-19 na porta de um hospital, sem respiradores que nos salvassem a vida.

Existe um sadismo característico nessa gente, uma fixação no sofrimento e na morte de dona Fernanda. Ela se repete toda vez que viramos alvo.

Continuo na esperança de que esse horror una o planeta, fortaleça o valor da ciência, da imprensa, da razão, da boa política e da compaixão, enquanto aguardo um milagre que
combata tanto a peste, quanto a funesta cultura do ódio.

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