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Escritora, roteirista e uma das idealizadoras do movimento Um Grande Dia para as Escritoras.

Os poetas de banheiro não podem morrer

Vida longa a todos os gigantes da pequena ambição no mundo da ambição gigante

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Sou do tempo em que porta de banheiro era folha de papel. Ali os poetas começavam cedo a sua carreira, trancados no sanitário da escola com caneta na mão declarando seu amor ou seu desejo por algum colega em versos cheios de hormônios e erros de ortografia.

À medida que os poetas de porta de banheiro amadurecem, amadurecem seus temas. Dentro da porta do banheiro de bar, surge o A de anarquia, a letra do Renato Russo, o verso de Rimbaud, a poesia autoral de quem já aprendeu que o amor, assim como o crime, nem sempre compensa.

E que desça mais uma rodada, já que a bebida ajuda a soltar a mão dos tímidos e ferver a mão dos experientes, fazendo das portas de banheiro de bar um acontecimento literário, uma ode à musa Noite, uma dignificação das cagadas. A riqueza de certas portas é tamanha que muitos estabelecimentos as tratam como relíquia, mantendo-as por décadas longe das reformas –já soube do caso de um proprietário que tentou restaurar com Pilot o haikai de um célebre mijante.

Porta de banheiro público em Santo Amaro, zona sul de SP - Robson Ventura - 3.out.2018/Folhapress

Mas isso não é para qualquer portinhola. Nunca vi poesia atrás de porta de banheiro de avião, talvez porque ali, se flagrado em exercício, o poeta não tem para onde correr. Portas de banheiro de firma também não costumam ser brindadas com o sangue esferográfico das palavras, talvez porque simplesmente não mereçam. Se querem que a fórmica ganhe o calor de um desabafo, que paguem ao poeta maquinal uma hora extra!

Já apontam alguns donos de porta que, de uns anos para cá, a produção artística vem decaindo. Muitos poetas do gênero, tomados por uma nova e avassaladora incontinência verbal, acabam soltando os versos nas redes sociais antes de chegar ao W.C.

Resta ao submundo das letras a poesia dos mais aguerridos. Aqueles que eu mais admiro: o poeta de porta de banheiro raiz. O anti-influencer. O que nunca fará de sua poesia uma dancinha para conquistar mais seguidores porque sabe que isso contraria a força de sua proposta. Mais do que isso: trai o trabalho de toda uma escola de trovadores que atravessaram os séculos inspirados pela ideia vanguardista de sempre obedecer ao chamado do aparelho urinário ou digestivo com uma caneta.

Ser um poeta de porta de banheiro é fazer marketing direto sem vender nada. É dar sem esperar retorno. É desenhar afrescos para um homem só. Ou uma mulher só. Ou uma criança só. É nadar na contra-Bic de um mundo em que todos buscam mais views. É resistir à tentação midiática de usar o muro. É fazer artesanato enquanto os medíocres colam em suas paredes frases de auto-ajuda impressas em adesivos Made in China.

Celebrar a poesia de porta de banheiro é dizer não ao mundo higienista. A estética de show-room. Às frases motivacionais. À limitação de caracteres do Twitter. À replicação algorítmica. É abraçar as cagadas fazendo da expansão retal uma oportunidade para a expansão artística.

Se esses bardos pré-Gutemberg estão em extinção ao menos não estão sozinhos. Vida longa também aos pintores de cadeira escolar, aos cravadores de coração em árvore, aos escrevinhadores de bilhetes anônimos, aos últimos bastiões do correio elegante, aos que esquentam com a palavra amor o gélido metal de alguma gélida superfície. A todos os gigantes da pequena ambição no mundo da ambição gigante.

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