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Poemas de Carla Diacov unem retrato libertário e tradicional da mulher

Tensão que guia o livro 'Voa Baixo & Dorme' já está na capa, feita de sangue menstrual da autora sobre imagem religiosa

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Voa Baixo & Dorme

  • Preço R$ 44 (106 págs.)
  • Autoria Carla Diacov
  • Editora Macondo

Na contramão do clichê "não se deve julgar um livro pela capa", "Voa Baixo & Dorme", da poeta paulista Carla Diacov, parece estampar uma chave visual de leitura: composta de uma pintura menstrual feita pela própria autora sobre a representação de uma figura religiosa feminina, a capa propõe uma tensão que guia a entrada do leitor no livro.

mulher santa com sangue por cima
Detalhe da capa de 'Voa Baixo & Dorme', livro de poemas de Carla Diacov - Divulgação

O aspecto vivo, quente e espontâneo do sangue sobre o convencionalismo do retrato neoclássico de Santa Cecília cria a expectativa de algo que se poderia chamar, sem exagero, profanação.

A tensão se confirma na dupla figuração do feminino ao longo do livro: uma, icônica, corresponde às expectativas mais tradicionais em torno da mulher, ligadas ao ambiente doméstico, à espera amorosa, à submissão diante de um interlocutor ou amado masculino.

Outra, simbólica, remete para a sintonia com o próprio corpo, que permite ao eu lírico, sempre feminino, a vivência dos excessos e das oscilações, liberta de padrões pré-estabelecidos.

Nesse sentido, aquela que fala nos poemas retrata a si mesma como ligada a elementos como, de um lado, a cozinha, os temperos, as fotografias, os gatos, os móveis e, de outro, o desejo, a "carne", o "assoalho pélvico", o "dormir cheirando os dedos" umedecidos na "noite molhada".

E, embora elogie o próprio desajuste em relação à "troca fixa de valores com o mundo" — como afirma no poema iniciado por "me sinto viva um pouco", talvez o mais bem construído do livro —, nem sempre se sente em conflito.

carla diacov
A poeta Carla Diacov - Arquivo pessoal

Alguns exemplos colhidos em poemas amorosos mostram como essas forças se relacionam para constituir a subjetividade. Dirigindo-se a um amor ora masculino, ora feminino, ora indeterminado, a amante vive as mais diversas situações: canta o sentimento, lamenta a ausência, tece lembranças. Reage de maneira violenta a um homem: em um dos poemas, imagina feri-lo, assassiná-lo e servir "suas tão ocas cavidades" aos gatos.

Em outro ("quando o pensamento for morno demais"), promete cremar o corpo e roubar a namorada de alguém que pode ser tanto mulher ("você vai estar distraída") como homem ("estaremos encantados").

Num terceiro caso que chama atenção ("você me acusa de te amar"), enumera queixas do par que incidem tanto sobre o papel convencional da mulher ("me acusa de feitiçaria porque preparo seus alimentos com a mão") como sobre sua subversão: "me acusa de traição porque contorno com a língua outras pessoas", "me acusa [...] de socorrer baratas".

Trata-se, portanto, de uma figura quase sempre bem comportada, com poucas exceções —como o poema "Memória II", uma defesa da masturbação feminina diante de recordações incômodas: "meta a siririca bem nos ovos dessa lembrança".

Um dos principais recursos da boa poesia, a aproximação de elementos díspares ou contrários, é, assim, buscada de diferentes maneiras nos poemas do livro, produzindo resultados também diversos.

Bem construído formalmente, "Paso Doble" brinca com dores corporais causadas pelo uso do computador com um misto de possibilidade de identificação e abertura para interpretação talvez pensado na justa medida para viralizar nas redes sociais.

Um encontro com a barata no banheiro brinca com a impossibilidade de produzir epifania, como costuma acontecer, em literatura, diante desse inseto: cria, assim, uma interessante figuração do absurdo desdobramento do corpo, mas não esconde um regozijo ingênuo diante da repetição insistente da palavra "bosta".

Mais consistência parece haver nos poemas que procuram extrair elevação do cotidiano, como a curta composição de três estrofes assim iniciada: "deixei essa maçã na mesa/ meu bem para que você notasse/ maçãs existem fazem bem ao/ sistema muito bem aos sistemas".

Tão carregado de simbolismos, o fruto ao mesmo tempo exige interpretação e aponta putrefação e esvaziamento: "a maçã que eu deixei na mesa para o/ meu bem está ali há três semanas// uma intenção mofa e desaparece/ porque outra intenção foi contemplada".

Trata-se de um exemplo breve e discreto de algo que havia sido anunciado na capa e que se faz presente também em um caso como o de "Para a Vênus de Willendorf". Concentrando-se, na verdade, na Medusa de Caravaggio, esse poema tematiza a opressão da mulher em diálogo com a história da arte.

Além de retomar, pelo título, a estatueta que já havia figurado em um poema forte de "A Menstruação de Valter Hugo Mãe", um dos livros anteriores de Diacov, seus versos lembram, assim, que a capacidade crítica da poesia cresce na medida da força dos símbolos enfrentados

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