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Quem foi Bob Brown, poeta, avô do ebook e colecionador de arte indígena no Brasil

Livro resgata obra vanguardista de autor americano que fez expedições por rios da Amazônia

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Claudio Leal

Jornalista e mestre em teoria e história do cinema pela USP

[RESUMO] Primeira antologia brasileira de poemas de Bob Brown (1886-1959) retira da obscuridade a obra do aventureiro, poeta vanguardista, fazendeiro, jornalista de economia e inventor de máquina de leitura que, ao lado de sua esposa, morou no Brasil de 1919 a 1927 e realizou expedições na Amazônia, onde conheceu a riqueza arqueológica dos povos indígenas.

A primeira antologia brasileira privilegia os livros "1450-1950" (1929) e "The Readies" (1930), mas também acolhe "My Marjonary" (1916) e "The South American Cook Book" (1939). Bichos geográficos, Brown e sua esposa, Rose, percorreram mais de cem cidades do planeta e dedicaram fidelidade às florestas tropicais.

Bob Brown em 1930 - Man Ray/Centro Georges Pompidou

A tradução criativa de Gabriel Kerhart corresponde às transgressões tipográficas de Bob Brown, escritor que editava seus poemas visuais sob a forma caligráfica e "rupestre", em cujos livros estão inoculadas agilidade plástica, síntese ideogramática e visão multicultural. Kerhart levou Brown à linguagem contemporânea do grafite, realizando assim uma das mais originais aventuras de tradução no Brasil. Os poemas vanguardistas de Brown foram grafitados em muros e, em seguida, fotografados. O que nos chega às mãos não se contenta em ser livro. Brown é lido no mundo.

Robert Carlton Brown nasceu em Oak Park, subúrbio de Chicago, em 1886, e morreu em Nova York, em 1959. De uma ponta a outra da vida, assumiu as máscaras de aventureiro, poeta vanguardista, inventor de máquina de ler, colecionador, fazendeiro e jornalista de economia. Enquanto moraram no Brasil, de 1919 a 1927, com recaídas nas décadas de 1930 a 1950, ele e a esposa, Rose Brown, ziguezaguearam entre São Paulo, Rio de Janeiro e os rios da floresta amazônica.

Ele editou o boletim financeiro Brazilian-American e, à primeira vista, demonstrou mais interesse em conhecer a arte indígena e a culinária popular que a literatura brasileira. Esforçou-se para aprender português e celebrou a existência da palavra "saudade". Gourmand, salivava por charque e galinha ao molho pardo.

No auge do modernismo de 1922, Brown residia no Brasil, mas se desconhece algum encontro seu com os escritores igualmente fascinados pela antropofagia. Aliás, seu interesse pelo tema era mais literal, como revela em um poema antirreligioso. "Eu tenho pensado/ Um bocado/ Sobre missionários/ Sendo cozidos em/ Panelas Pretas/ Por homens pretos/ E eu sempre chego à conclusão/ Por que não?"

Ainda hoje, o poeta é um desconhecido do mundo intelectual brasileiro. Fotografado nos anos 1930 por Man Ray, circulou no círculo de expatriados americanos em Paris. A amizade ou o simples diálogo com expoentes da vanguarda no século 20 —Gertrude Stein, Ezra Pound, Marcel Duchamp, H.L. Mencken e William Carlos Williams— não resultaram em uma difusão maior de sua obra, apesar dos esforços do poeta Jonathan Williams, editor dos Jargon Books.

Em 1965, no suplemento literário de O Estado de S. Paulo, o poeta concreto Augusto de Campos teve bons olhos para seus poemas óticos e elogiou a "ausência de formalismo versificante" nos manuscritos e desenhos de "1450-1950", comparando-o ao humor e à liberdade plástica de um contemporâneo brasileiro, o poeta Oswald de Andrade do "Primeiro Caderno do Aluno de Poesia" (1927).

"Seus pés são figurados um na China e outro no Brasil. O Brasil pau-brasil de Oswald? Trinta anos depois, Oswald ressuscitado, não podemos também faltar à ressurreição de Brown. Seus poemas óticos precisam ser vistos", recomendou Campos, com pioneirismo, no ensaio incorporado ao livro "À Margem da Margem", de 1989.

Nos Estados Unidos, Bob Brown passou a ser conhecido como "avô do ebook", na definição de Jennifer Schuessler, do jornal The New York Times. Em 1930, sob influência da escrita automática dos surrealistas e do estilo de Gertrude Stein, Brown apareceu com o projeto de uma máquina elétrica de leitura, em que os textos eram introduzidos em bobinas e lidos em um visor.

O inventor desejava ler um romance de centenas de milhares de palavras em dez minutos. Stein, sua entusiasta, conheceu o protótipo da maquineta futurista. Na antologia "Revolução Ocular do Globo", Gabriel Kerhart incluiu o primeiro capítulo de "The Readies", ligado à invenção visionária.

"Sou a favor de novos métodos de leitura e escritura e acredito que o leitor-antena, quando compra algo para ler, merece encher os olhos", defendeu Bob Brown, ao desenvolver uma linguagem poética telegráfica, banhado em Apollinaire. "Modernas transportadoras de palavras são necessárias agora, leituras serão feitas por máquinas; tipos microscópicos em fitas móveis correndo sob uma grelha equipada com uma lupa e trazendo o tamanho da vida no pássaro olho do leitor."

A primeira biografia de nível de Brown só apareceria em 2016. "The Amazing Adventures of Bob Brown: a Real Life Zelig who Wrote His Way Through the 20th Century" (as incríveis aventuras de Bob Brown: um Zelig da vida real que escreveu seu caminho através do século 20), de Craig Saper, compara o poeta camaleônico ao personagem do filme de Woody Allen, por ser capaz de se adaptar a diferentes situações.

Saper se apoia sobretudo nos relatos de viagens do casal pela Amazônia. O livro deixa lacunas sobre o cotidiano de Brown e Rose no Brasil. Sabe-se que tiveram casas em São Paulo, Rio e a mais idílica em Petrópolis ou que investiram em plantações. De resto, há mistério quanto à vida social do escritor e correspondente estrangeiro, que esteve próximo do jornalista Herbert Moses.

Os vestígios da trajetória brasileira de Bob Brown repousam em coleções de jornais do Rio. Na hemeroteca da Biblioteca Nacional, seus rastros surgem nas páginas de classificados. Em 13 de abril de 1941, no Correio da Manhã, ele tentava passar adiante uma propriedade rural, a fazenda Alto da Serra, em Petrópolis: "35.000 metros quadrados, com força hidráulica, fonte boa, quatro casitas e lugares para 40 mais. Robert Carlton Brown, Hotel dos Estrangeiros – Fone 25-7230".

No Jornal do Brasil, em 18 de maio de 1941, seria a vez de oferecer por cem contos os 45 mil metros quadrados de "magnífico terreno panorâmico" em Petrópolis. Nos dias 18, 20, 21 e 22 desse mês, a maior obsessão de Brown emergiu em anúncios no JB, Correio da Manhã e Jornal do Commercio. "Compra - Coisas indígenas e artísticas do Amazonas, costumes curiosidades colares e utensílios índios legítimos. Também fotografias. Robert Brown, Hotel dos Estrangeiros".

Duas raras entrevistas do escritor, ausentes em sua biografia, foram concedidas a jornais hoje extintos. Em 23 de setembro de 1941, no Diário da Noite, o repórter descreveu seu português "trescalando alemão", carregado de erres. Em uma fotografia, ele aparece no quarto nº 4 do segundo andar do Hotel dos Estrangeiros, no Flamengo. "O sr. Brown abre-nos a porta, risonho e afável, gordo, corado, a fronte e a camisa umedecidas pelo suor, apesar da baixa temperatura."

Em torno da cama, a desordem de malas e cerâmicas. "Meu marido cada dia aumenta a bagagem, e quer tudo bem arrumado, para não se quebrar. Então, ninguém conseguiu ainda lugar bastante para tantos objetos diferentes", avisou Rose Brown.

"Encostados pelas paredes, arcos indígenas, montes de flechas, cestos de palha, esteiras. Pelo chão, baús velhíssimos, com grandes fechos de ferro, móveis antigos, e uma profusão de pacotes de formatos diversos, em papel de jornal. Nas prateleiras de uma estante, uma quantidade de peças curiosas da cerâmica dos povos que primitivamente habitaram as selvas amazônicas", detalhou o jornalista.

O poeta abriu o guarda-roupa e, em vez de ternos de bom corte, apareceram cerâmicas marajoaras e santarenas, algumas delas mutiladas ou aos cacos. Bob Brown mostrou autorizações do governo brasileiro para levar as peças aos Estados Unidos.

"Minha mulher e eu fizemos uma excursão de cinco meses pelo rio Amazonas e alguns dos seus afluentes, a fim de colher dados para um livro. Mas vimos coisas tão bonitas e curiosas, ficamos tão encantados com os hábitos e as tradições locais, que compreendemos que aquele trabalho só não bastaria para satisfazer o interesse dos nossos patrícios norte-americanos. Projetamos então realizar também algumas conferências, acompanhadas por uma exposição do material que levamos", explicou Brown.

"Nossa ideia maior é fazer com que uma das grandes empresas de Hollywood mande fazer um filme natural de grande metragem na Amazônia. Já tomamos algumas providências e estamos certos de que a ideia vingará. Os americanos apreciarão muitíssimo o assunto. O Brasil tem nessa região material exuberante para interessar todos os povos."

O livro de viagens à floresta, escrito com Rose, seria lançado em 1942. Jamais editado no Brasil, "Amazing Amazon" mereceu uma resenha do New York Times. O biógrafo Craig Saper elogia o caráter incomum do guia dos Brown, que chegaram a almoçar peixes pescados pela janela de um hotel, sem escapar do exotismo nas refeições: "Vem à mesa capivara, veado, pato selvagem e outras caças ocasionais, mas só comemos frango duas ou três vezes por semana, porque o preço é proibitivo".

Na longa jornada amazônica de 1941, Bob Brown torrou o dinheiro acumulado com o argumento do filme "Nobody's Baby" (1937), de Gus Meins, e o adiantamento da editora para a pesquisa de "Amazing Amazon". Em Hollywood, o casal escreveu cinco tratamentos de histórias brasileiras, absorvendo o movimento tenentista e o projeto da estrada de ferro Madeira-Mamoré.

Três anos depois, Brown e Rose regressaram ao Rio e abriram mais uma vez o guarda-roupa antropológico. Em 19 de novembro de 1944, o Diário Carioca ouviu os "jornalistas e arqueólogos" recém-chegados de uma viagem de coleta de cerâmica indígena no vale amazônico. Antes de atravessar a fronteira brasileira, o casal percorrera México, Peru e Equador em busca de heranças artísticas dos povos maia e asteca. Nas mesas, esparramaram uma coleção de "bonecos pretos". "São dos mochicas e chimus, da costa norte do Peru", ele explicou.

"Como puderam trazê-los intactos através de tão grandes distâncias?", indagou o repórter. "Trouxe-os ao colo como ‘sábios’, e isso passando pelo Yurimaguas, pelas cabeceiras do Huallaga e do Marañón [rios peruanos] até Iquitos", contou Rose.

Brown exalou alegria no retorno ao Brasil e recordou sua presença na exposição do centenário da Independência, em 1922, como membro da Comissão Americana. "Nesta terra passamos alguns dos anos mais felizes da nossa vida. É como se fosse nossa segunda pátria, ou nosso segundo 'home'", acrescentou Rose. "Queríamos rever os sítios onde em 1940-41 estivemos escrevendo o livro ‘Amazing Amazon’. Paramos, então, em Santarém, por algum tempo, pois, a nosso ver, é a cidade mais interessante da Amazônia".

Ao longo da coleta, eles se impressionaram com a riqueza arqueológica de Santarém (PA) e até fizeram escavações. "Bob ficou fascinado com as buscas que, quase diariamente, davam ótimos resultados, trazendo novos frêmitos de entusiasmo. Me deleitei com a tarefa de recompor os objetos partidos e ambos mal percebemos que o tempo voava", ela declarou. "O trabalho deles [indígenas da região] é amadurecido e seguro. Nota-se que tinham um método de aprendizagem e cuidadoso treinamento. Não possuíam tornos, modelavam formas e figuras à mão. Eram verdadeiros escultores e não repetiam peças."

"No gênero, os seus trabalhos podem ser comparados, do modo mais favorável, aos de quaisquer outros da época, não só com os das Américas como com os do resto do mundo", completou Bob Brown, mostrando um belo vaso.

O poeta levou as cerâmicas de Santarém a Hollywood para que fossem integradas ao cenário de um filme ambientado na Amazônia. A Segunda Guerra Mundial esvaziou o projeto, e ele se contentou em expor sua coleção em um museu de Los Angeles. "Essa foi a primeira exposição brasileira vista em Los Angeles. Os arqueólogos do museu e nossos amigos artistas exilados de Paris estudaram as peças e ficaram encantados com o padrão do seu super-realismo, aguçando-lhes a curiosidade de conhecerem o lugar de onde provinham."

O coração de Bob Brown se reanimou ao saber do projeto de um filme de Orson Welles no Brasil, em 1942. Sem sucesso, tentou colaborar com a equipe. Nessa altura, ele pensava em criar um museu interamericano para promover a arte dos povos indígenas.

A maior parte de sua coleção acabou adquirida pela Fundação Brasil Central, criada em 1943, e mais adiante entrou no acervo do Museu Nacional. Os tesouros arqueológicos de Rose e Bob Brown foram certamente destruídos pelo incêndio de setembro de 2018, mas uma parte da arte indígena coletada no Brasil e Peru persiste no Museu Nacional do Índio Americano, em Nova York, que comprou as peças de Brown em 1942.

Esses lotes incluem cachimbo e esculturas dos mundurukus, do Pará, uma figura de macaco de uma etnia do rio Xingu, além de vaso, ralador de alimentos e escultura de cabeça humana dos ashaninkas, da região de Loreto, no Peru.

Os Brown decidiram viver seus anos finais no Brasil. Em 1946, puseram à venda uma propriedade na rua Teresa, 153, em Petrópolis. Com cinco livros ambientados no país, um deles sobre a história do imperador dom Pedro 2º, Rose morreria em 1952, no Rio.

Em depressão, Brown passou a escrever cartas para a esposa morta, na esperança de uma ressurreição literária, como conta seu biógrafo. Sem a companheira de aventuras, Bob Brown regressou à vanguarda do Greenwich Village, em Nova York, e se casou com uma velha amiga. "Revolução Ocular do Globo" agora finca seus dois pés no Brasil.

Revolução ocular do globo: coleção de escritos ópticos de bob brown

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