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Descrição de chapéu

Tenho medo de que as peças não voltem nunca e os teatros não abram

Minha filha, porém, me obriga a ver que essa arte não morrerá já que há gente que nasceu com um impulso vital

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Meus pais não tinham nada a ver com isso. Era sempre uma ideia minha. Qualquer pessoa que passasse pela minha casa tinha que me ouvir cantar. Mesmo que fosse uma reunião de trabalho, ou mesmo que estivessem bêbados, ou que fosse apenas o cara da Net —eles precisavam me ouvir cantar.

Não podia ver uma visita que logo vestia meu paletó xadrez e minha gravata borboleta verde. Então sussurrava no ouvido do meu pai, que me acompanharia no piano: “Hoje vamos cantar, né?”.

“Mais tarde”, ele dizia, “agora as pessoas estão conversando”, talvez na esperança de que eu desistisse ou esquecesse. Mas eu nunca esquecia, nunca desistia. Ficava em pé, ao lado do piano, até que alguém perguntasse, talvez por pena: “Ele vai cantar?”.

As pessoas então se sentavam em volta do piano, no qual meu pai tocava sempre as mesmas três músicas dos Beatles.

“When I’m 64”, “Let It Be” e “Oh Darling”, que eu cantava sem entender a letra. Nessa última, eu me atirava no chão cantando os falsetes, e as pessoas riam. Não era pra ser cômico. Mas no fundo gostava que fosse. Adormecia no sofá da sala, com as conversas ao fundo, e a sensação de dever cumprido.

"Hoje vai ter festa?” pergunta, todos os dias, minha filha de três anos. E por festa ela quer dizer a visita dos avós, ou de um casal de amigos, que é a festa que a gente consegue fazer nessa pandemia. E assim que eles chegam ela sussurra no meu ouvido ou no da mãe dela: “Pede pra eu fazer um teatro?”.

E eu digo: “Mais tarde, agora as pessoas estão conversando”. Daí ela volta pra sala com uma fantasia de princesa. E olha pra gente fixamente até que alguém peça: “Faz um teatro pra gente?”, e então ela começa a contar a história dos três porquinhos que se mistura à da Chapeuzinho Vermelho, com toques de “Ben and Holly” e “Max and Ruby”. Ao final, ela agradece pelos aplausos e diz que pode repetir tudo de novo, se a gente quiser.

Publicada em 20 de julho de 2021 - Catarina Bessell

Sempre achei que cantasse pra imitar meus pais, que eu cresci vendo no palco. Mas minha filha nunca me viu no teatro nem sequer foi ao teatro. A pandemia chegou quando ela tinha acabado de fazer dois anos. Não sei nem onde foi que ela ouviu a palavra teatro.

Às vezes tenho medo de que as peças não voltem nunca mais, porque grande parte da plateia morreu e grande parte dos teatros fecharam pra sempre. Mas minha filha me obriga a ver que ele não vai morrer nunca. Tem um tipo de gente que nasceu com esse impulso vital. E esse tipo é um tipo de gente que não desiste fácil.

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