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Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

Os imortais

De que vale ter uma vida de eternidade quando não há razões para vivê-la?

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De vez em quando, quando olho para o meu filho –​de três anos, quase quatro– pergunto retoricamente qual será a longevidade dele. 

Nascido em 2015, ele pode conhecer o próximo século. Mas se a medicina conseguir conquistar o envelhecimento e a morte – não é esse o santo graal do momento? – será que ele vai conhecer o novo milênio? 

Esse pensamento ganhou forma com um ensaio primoroso de Regina Rini no número mais recente do “Times Literary Supplement”

Escreve a autora: em 1900, um cidadão americano tinha uma média de vida de 47 anos. Em 1950, a meta já estava nos 68. Em 2057, é possível que o limite seja os 100. 

Agora, imagine o seguinte, caro leitor: a ciência anuncia, ainda durante as nossas vidas, que o envelhecimento e a doença serão revertidos em 2119. 

Sim, esse ano já será demasiado tarde para nós. Aliás, será demasiado tarde até para os nossos filhos. 

Mas não será para os nossos netos. Mais: com essa data imaginária, nós seremos os últimos mortais a partilhar a Terra com os primeiros imortais. Que tipo de convivência teremos com eles? Haverá inveja? Sofrimento? Desespero ante o nosso (injusto) destino? 

O ensaio de Rini é um elegante exercício de especulação filosófica. E a autora, evocando Simone de Beauvoir em “Todos os Homens São Mortais” (1946), termina a sua indagação com um pensamento consolador: se as nossas vidas se justificam pelo legado que deixamos aos outros, então devemos olhar para os primeiros imortais como os felizes depositários desse histórico legado. 

Nós seremos o último elo entre a humanidade perecível e a humanidade eterna. De certa forma, seremos tão pioneiros e afortunados como eles. 

Entendo o argumento de Rini. Mas, com a devida vênia à autora, sugiro uma alteração no seu raciocínio. 

A páginas tantas, Rini cita um dos meus filmes favoritos: “Feitiço do Tempo” (1993), uma comédia de Harold Ramis com um Bill Murray próximo da perfeição. 

No filme, Murray está preso no tempo, condenado a viver o mesmo dia todos os dias (uma premissa narrativa que é repetida na recente série “Boneca Russa”). 

Bill Murray e Andie MacDowell no filme "Feitiço do Tempo" - Divulgação

Para Rini, o filme é uma boa metáfora sobre o tédio que pode acometer os imortais e para o qual vários filósofos já nos alertaram: quando estamos condenados a viver eternamente, deixamos de ter urgência para fazer alguma coisa. 

Mas existe uma outra dimensão do filme que Regina Rini ignorou: o personagem de Bill Murray só consegue seguir em frente quando encontra um mínimo de sentido para a sua existência.

E esse sentido não está no hipotético legado que deixará para os vindouros. Está na forma como vive o seu presente. Quando isso acontece –quando o personagem encontra um propósito para si próprio e na relação com os outros– ele consegue finalmente quebrar o feitiço e despertar na manhã seguinte. 

De fato, e como diria o inestimável Viktor Frankl (1905-1997), de que vale ter uma vida de eternidade quando não há razões para vivê-la? 

Da próxima vez que olhar para o meu filho, vou desejar-lhe uma vida longa, sem dúvida. Desde que essa vida seja dotada de sentido.

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