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Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

Mundo pós-pandemia será lembrado como a gripe espanhola, um embaraço

Sobreviventes da Covid-19 tentarão não tocar no assunto da Covid-19 e, por isso, haverá uma memória editada

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Quando o vírus estiver domado e as sociedades regressarem à normalidade, quais são as primeiras cinco coisas que o leitor fará?

Um editor lançou-me o desafio nesse primeiro aniversário da Covid-19. Eu peguei na lapiseira, na folha e escrevi as cinco num fôlego só. Quer saber quais são?

Um pouco de paciência. Digo apenas isso: quando lia as minhas cinco prioridades para o mundo pós-Covid lembrei instintivamente aquela história que Alfred Hitchcock contava sobre o jovem diretor que, todas as noites, sonhava com uma história brilhante para o seu filme. De manhã, quando acordava, já se tinha esquecido do sonho.

Então decidiu: levar um bloco de notas para caçar a inspiração noturna, da mesma forma que os lepidopteristas levam redes para caçarem as suas borboletas.

Assim foi: adormeceu, sonhou, acordou a meio da noite, pegou no bloco e escreveu furtivamente a ideia. Adormeceu logo em seguida com um sorriso de triunfo nos lábios.

De manhã, quando acordou, olhou para o bloco e leu: “Rapaz se apaixona por moça”. Quem disse que as melhores histórias não são também as mais banais?

A minha lista de desejos é banal. Quero caminhar pelas ruas sem máscara (aliás, quero queimar as máscaras).

Ilustração de Angelo Abu para a coluna de João Pereira Coutinho de 2 de março de 2021 - Angelo Abu/Folhapress

Jantar com os amigos nos restaurantes habituais.

Passar um dia no cinema, vendo sessão após sessão, até ser expulso da sala por só ter comprado um ingresso.

Flanar pelos cafés da cidade —café da manhã no primeiro, almoço no segundo, sesta no terceiro, jantar no quarto.

E nadar na piscina de sempre até o meu corpo criar escamas de peixe.

Não estou sozinho na minha falta de inspiração. Vou falando, vou escutando —e os desejos dos outros são igualmente prosaicos, o que torna suspeitas as grandes profecias de que o mundo de ontem não voltará mais.

Será que os profetas nada aprenderam com as pandemias do passado?

A gripe espanhola, há cem anos, é um bom exemplo. Tempos atrás, lendo o mais recente ensaio de Ivan Krastev (“Is It Tomorrow Yet?: Paradoxes of the Pandemic”, publicado pela Penguin), encontrei números que desmentem os profetas.

A gripe espanhola terá matado entre 50 milhões a 100 milhões de pessoas entre 1918 e 1920. A Primeira Guerra matou 17 milhões; a Segunda Guerra, 60 milhões.

Isso significa que, em termos de mortandade, a gripe espanhola é o acontecimento mais brutal do século 20.

Porém, quando perguntamos a alguém qual foi o maior desastre desse século, a gripe espanhola não é a candidata mais óbvia.

O mesmo sucede na produção livresca. Consultando o WorldCat, o maior catálogo bibliográfico na internet, Ivan Krastev encontrou 80 mil livros sobre a Primeira Guerra Mundial (em mais de 40 línguas). Para a gripe espanhola, há 400 livros (em cinco línguas). Como explicar essa discrepância?

Para o autor, isso se explica pelo fato de as pestes não terem história, no sentido narrativo da palavra. Não são, como as guerras, lutas heroicas entre bem e o mal, capazes de oferecer uma lição
—e, sobretudo, um sentido.

As pestes não têm sentido. São contingentes, aleatórias, impessoais. Aparecem e desaparecem —sem aviso. Como escreve Krastev, “a estranheza da experiência pandêmica é que tudo muda, mas nada acontece". "Somos solicitados a salvar a humanidade ficando em casa e lavando as mãos.”

É possível ressignificar uma vida perdida nas trincheiras —foi uma vida em prol da liberdade, da democracia, da simples decência humana, dizemos. Nada foi em vão, mesmo que tenha sido em vão.

Uma vida perdida para um vírus é o supremo absurdo, o desperdício mais patético e mais trágico.

De tal forma que, depois da gripe espanhola, as populações mais atingidas preferiam nem falar do assunto. Foi sobre esse silêncio, sobre esse esquecimento vital, que se construiu uma memória editada.

Ninguém sabe o que será o futuro. Da mesma forma que ninguém soube como seria este nosso presente, algo que deveria esfriar a arrogância dos profetas.

Mas não excluo que a Covid-19, com seus 2,5 milhões de mortos (por enquanto), será um dia recordada como a gripe espanhola. Como uma interrupção, um embaraço. Um segredo de família.

E nós, por incrível ou injusto que pareça, voltaremos às nossas vidas banais como se nada tivesse acontecido.

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