Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.
Harry e Meghan abrem as portas da mansão e falam como se vivessem na favela
É preciso ter um deserto no lugar do cérebro para perder um minuto com as divagações de documentário da Netflix
Já é assinante? Faça seu login
Continue lendo com acesso ilimitado.
Aproveite esta oferta especial:
Oferta Exclusiva
6 meses por R$ 1,90/mês
SOMENTE ESSA SEMANA
ASSINE A FOLHACancele quando quiser
Notícias no momento em que acontecem, newsletters exclusivas e mais de 200 colunas e blogs.
Apoie o jornalismo profissional.
Todo mundo tem palavras duras sobre o populismo. Mas poucos se atrevem a dizer que o populismo nasce de uma traição das elites.
Essa traição acontece quando as elites políticas, culturais ou mediáticas deixam de olhar para os seus semelhantes como parte de uma experiência comum e decidem que metade da população não merece ser escutada ou ajudada em seus medos, preocupações ou anseios.
O líder populista gosta de fazer uma distinção maniqueísta entre "nós" —o povo, os puros— e "eles" —a elite, os impuros. Mas o líder populista apenas inverte a mesma lógica que as elites também cultivaram. Ambos são o espelho de ambos.
Pensei nisso quando assistia, incrédulo, ao documentário "Harry & Meghan", na Netflix. O documentário é entediante porque os dois personagens são entediantes. É preciso ter um deserto no lugar do cérebro para perder um minuto com as divagações de Harry Windsor e Meghan Markle.
Exceto, claro, se o fizermos por razões antropológicas —antigamente, se você ocupasse um lugar de riqueza e privilégio na escala social, teria pelo menos algum pudor em falar publicamente das suas dores e traumas.
Os milionários Harry e Meghan não têm pudor algum. Primeiro, recebem as câmeras na sua mansão da Califórnia. Depois, falam das suas vidas como se vivessem na favela, sujeitos às humilhações, violências e indignidades dos mais pobres.
Mesmo a cartada racista com que Meghan Markle se vitimiza não vem acompanhada por um momento de autocrítica —"Eu, pelo menos, tenho riqueza e poder para me proteger desses preconceitos. Mas como será com os negros marginalizados? Terei sequer o direito de me comparar a eles?"
Ponto prévio: ninguém de bom senso nega que fazer parte da monarquia britânica é estar sujeito a um escrutínio insano. E também ninguém nega que os tabloides do país são exemplos de vulgaridade e xenofobia.
Mas esses incômodos têm solução —fazer uma vênia e desaparecer da paisagem.
Harry e Meghan optaram por esse caminho. Mas depois, sem as câmeras por perto, foram eles próprios a chamá-las para um espetáculo contínuo de exposição íntima.
Ou é masoquismo, ou é orçamento. Em qualquer dos casos, há aqui um grau de alienação que apenas reproduz, em versão extrema, a alienação das novas elites perante o destino dos menos afortunados.
Na Revolução Francesa, ficou célebre o comentário apócrifo de Maria Antonieta sobre o povo faminto —"Se não têm pão, que comam brioches."
Harry e Meghan não precisam dizer isso. Eles comem brioches ao mesmo tempo que reclamam da dieta.
Receba notícias da Folha
Cadastre-se e escolha quais newsletters gostaria de receber
Ativar newsletters