Jorge Coli

Professor de história da arte na Unicamp, autor de “O Corpo da Liberdade”.

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Jorge Coli

Ideais da Revolução Francesa persistem, mesmo no Brasil bolsonarista

Luz da razão pode ser encoberta, como nas trevas de hoje, mas claridades maiores surgirão a partir dela

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Nesta quarta (14), a Revolução Francesa completou 232 anos. É bem mais do que apenas uma data nacional. Desde seu início, a revolução se quis ilimitada. Proclamou não o direito dos franceses, mas o direito de todos os seres humanos como cidadãos. Robespierre declarava: “A linguagem da Revolução francesa não está reservada ao próprio povo francês, mas se dirige a toda humanidade”.

Concebida pelo Iluminismo, ela se baseava nesse elemento comum aos seres humanos: a razão. Chegou ao ponto de transformar as velhas igrejas em templos cívicos: ali se passava a adorar a deusa razão, num breve, mas significativo episódio de descristianização.

A Revolução Francesa ocasionou violência e massacres tremendos, teve o seu período do terror, autoritário e sanguinário. Pensou que iria modificar rapidamente o espírito da humanidade, fez a força das ideias abstratas se chocar com a realidade humana, e foi vencida pela história.

Engendrou o império napoleônico, sofreu a restauração da velha monarquia, viu golpes que fizeram suceder regimes pouco democráticos. Foi muito criticada, às vezes por razões ideológicas, às vezes de modo mais do que justificado.

Permanece, porém, o fato de que separou águas. Trouxe o projeto de que a humanidade poderia ser feliz aqui mesmo, na Terra: felicidade, essa “ideia nova na Europa”, como disse Saint-Just. Felicidade que, na catedral de Notre-Dame, o abade Fauché oficiando o serviço fúnebre em honra das vítimas da tomada da Bastilha, conclamou, em seu sermão: “Irmãos nesta nave consagrada ao eterno, juremos que seremos felizes!”.

É também um grande momento de inovação. A revolução propôs o princípio do seguro social e da aposentadoria, assim como políticas de redistribuição de renda para os mais desfavorecidos. Fez a educação tornar-se obrigatória. O voto e a soberania popular foram pensados como base da República. A escravidão foi abolida nas colônias —para ser reestabelecida depois por Napoleão— e pela primeira vez se falou em um "crime contra a humanidade". São caminhos que não tinham mais volta.

Depois de mais de dois séculos, pensando na humanidade de hoje —e, em particular, neste triste Brasil de agora—, isso soa irrisório, porque estamos muito longe de uma felicidade universal. Ocorre, porém, que os valores mais positivos inseridos de modo dramático na história pelos acontecimentos revolucionários de 1789 não desapareceram.

Um dos mais notáveis historiadores da Revolução Francesa, Michel Vovelle, percebe-a como um instante privilegiado de experimentação e de descoberta. Os erros da prática histórica não excluem o fato de que ela inoculou uma nova percepção da humanidade sobre si mesma. É Vovelle quem diz: “Se ela fosse apenas isso, poderíamos dizer que vivemos ainda sobre uma parte das esperanças e sobre toda uma parte das dinâmicas fecundas que ela iniciou”.

Seus melhores princípios permaneceram subterrâneos, aflorando de modos diversos e mais ou menos evidentes, com muitos passos para trás. Na história da longa duração, ela persiste, por meio de um aprendizado extenso —ideia tão cara a outro grande historiador, Maurice Agulhon. Há um aprendizado da democracia, da República, da liberdade, que se faz, de modo vivido, com idas e vindas.

É muito espantoso pensar que, mais de 230 anos depois desse grande abalo e dos grandes ideais trazidos pela Revolução Francesa para toda a humanidade, tenha havido tanto recuo no mundo, e que o Brasil, em particular, recue sob o governo mais infame que se possa imaginar.

Um governo apoiando-se no obscurantismo religioso intolerante, nos mais violentos ataques à razão científica, por meio de um negacionismo a toda a inteligência e a todas as luzes —negacionismo que incidiu de maneira tão brutal sobre o nosso recorde tremendo de 500 mil e tantos mortos, durante uma pandemia expressamente ignorada ao invés de combatida.

A República, como o regime da racionalidade que a Revolução Francesa ideou, é frágil. O revolucionário Camille Desmoulins lembrava que a Revolução é uma dinâmica, uma exigência. É Vovelle quem resume: para Desmoulins, “a experiência da Revolução Francesa permanece aquela de uma República como conquista sempre ameaçada, como responsabilidade coletiva, uma responsabilidade coletiva que é a de todos os cidadãos”.

Ou seja, essa República é como a liberdade: defender incessantemente e incessantemente conquistar. Desmoulins pagou caro essa vigilância crítica: vítima da própria Revolução, foi guilhotinado aos 34 anos, depois de um julgamento iníquo.

A Revolução, ao surgir, enveredou por descaminhos: por eles, demonstrou como imperativa a exigência que Goya havia proclamado em uma gravura de seus “Caprichos”: o sono da razão produz monstros. A razão não tem o direito de dormir, precisa de um esforço incessante, exaustivo, de vigilância em todos os sentidos.

Sua luz, depois de instaurada, pode ser diminuída, encoberta, como agora, neste Brasil bolsonarista de trevas e pesadelos monstruosos. Mas significa também, quem sabe, que claridades maiores surgirão a partir dela. Sem ela, terminam as esperanças.

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