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Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

'Os Fabelmans' mostra como uma vocação artística pode ser fonte de dor e glória

Filme é retrato honesto e delicado das alegrias e dores que vêm com uma vocação

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1.

O diretor Cecil B. DeMille sempre foi implacável com as crianças. Eu teria uns 6 ou 7 anos quando assisti na tela a "Os Dez Mandamentos", a segunda versão do diretor, com Charlton Heston transportando as tábuas da lei e dividindo o mar Vermelho.

Foi o meu primeiro filme. Foi o meu primeiro terror. Uma sequência da história, em particular, explica esse terror. Acontece quando a morte desce sobre o Egito para levar todos os primogênitos.

Quem diria, pensava Little Couto na escuridão da sala, que a morte era assim: um nevoeiro denso que se alastra como um miasma imparável.

'Os Dez Mandamentos', de Cecil B. DeMille. - Divulgação

Ainda hoje, 40 anos depois, tenho um certo temor pelo nevoeiro, o que não deixa de ser irônico: a cidade onde escolhi viver amanhece quase todos os dias sob um manto gris. Freud, como sempre, explica.

Sammy Fabelman, alter-ego de Spielberg em "Os Fabelmans", também tem terrores para contar depois de uma experiência com DeMille. Mas, no caso dele, esse terror se converte em imitação, a origem de todo processo criativo: depois de assistir a "The Greatest Show on Earth", a criança tenta reencenar em casa o acidente de trem do filme e captá-lo com uma câmera de 8mm.

Cena do acidente com trem em 'O Maior Espetáculo da Terra', de Cecil B. DeMiile (1952) - Divulgação

É o princípio da sua paixão. É o princípio da sua perdição, porque "Os Fabelmans" não é, apenas, uma mera declaração de amor ao cinema. Quando o hobby deixa de ser hobby, o cinema é também uma fonte de angústias vitalícias.

Como lhe explica o tio-avô Boris, um extraordinário papel de Judd Hirsch, a arte é uma amante exigente, que rivaliza com outras lealdades mundanas, como a família.

Mas a arte transporta também outro preço: ela revela o que estava oculto na "vida normal". E essas revelações nem sempre são apaziguadoras.

No filme, isso ganha contornos literais quando o jovem Sam se confronta com o segredo da mãe através das suas filmagens. O que era invisível aos seus olhos torna-se dolorosamente transparente através da lente de uma câmera.

Nos últimos anos, vários diretores têm regressado à infância para reconstruir as suas educações sentimentais. Paolo Sorrentino fez isso em "A Mão de Deus". Kenneth Branagh também, em "Belfast".

E Pedro Almodóvar, com "Dor e Glória", navega nas mesmas águas que Spielberg, mostrando como as nossas infelicidades podem ser, ao mesmo tempo, a matéria preciosa de uma redenção através do ato criativo.

"Os Fabelmans", não sendo uma obra-prima como o filme de Almodóvar, é um retrato honesto e delicado das alegrias e das dores que vêm com uma vocação. E ainda têm um final de gênio que faria a inveja de Almodóvar.

Pedir mais talvez fosse pedir demais.

2.

Leitores fiéis me perguntam: o que você achou de "Tár", Little Couto? Entendo a curiosidade: escrevo com frequência (e insistência) sobre a "cultura de cancelamento". O filme de Todd Field coloca esse fenômeno no centro da narrativa, cartografando com inegável rigor formal a queda da regente de orquestra Lydia Tár, acusada de abusos sexuais sobre jovens musicistas.

Lamento. Essa é a parte menos interessante do filme, confesso, e a mais óbvia também: a sequência de que todos falam, na Juilliard School, quando Lydia desce o pau sobre um aluno que não gosta de Bach porque o compositor era branco, cis e misógino, me parece forçada.

Cate Blanchett em cena do filme "Tár", de Todd Field - Divulgação

Aliás, creio mesmo que metade do ruído sobre o filme só se explica porque Todd Field escolheu, como "predadora sexual" (para usar essa expressão cafona), uma mulher lésbica. Há cabeças que não aguentam tanta ambiguidade.

O melhor de "Tár" está na figura de Lydia, tal como Cate Blanchett brilhantemente a construiu, embora esse nem sequer seja o seu nome verdadeiro, saberemos depois. Lydia Tár é uma criação erudita, diria mesmo um clichê da alta cultura, ainda que sobre alicerces sólidos: quando a vemos, caída em desgraça, admirando em lágrimas as velhas videocassetes com as lições apaixonantes de Leonard Bernstein, seu mentor, entendemos que o amor pela arte é genuíno.

Ilustração publicada em 28 de fevereiro de 2023 - Angelo Abu

A tragédia de Lydia já foi bem diagnosticada pelos gregos. Não, não é "hubris", esse excesso de autoconfiança que leva o agente a desafiar o destino implacável; é, antes, excesso de "filotimia", o fascínio pelo poder e pelo status que acaba corrompendo a alma humana, sobretudo quando os alcançamos.

É por isso que o final, longe de ser enigmático e pessimista, me parece transparente e até otimista. Poder começar do zero, ou do menos que zero, às vezes é uma bênção.

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