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Engenheiro e jornalista, foi repórter, correspondente, editor e secretário de Redação na Folha, onde trabalha desde 1991. É ombudsman

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Santa Rita e os pecados da Folha

Alvo deveria ser o jornal, mas linchada é a repórter por um título que não fez

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Amigos no grupo de WhatsApp trocavam músicas e postagens sobre Rita Lee pouco depois de sua morte ser noticiada pela imprensa na manhã de terça-feira (9). Entre muitas boas lembranças, o link de uma propaganda de jeans datada no YouTube como de 1978. Qualquer um que foi criança ou adolescente no fim dos anos 1970 certamente lembra desse comercial desprentensiosamente erótico, mas que por olhos atuais faria boa parte do atual Congresso estrebuchar nas redes sociais e o governo do Acre derrubar o sinal da TV: casais se beijando, "vestindo fantasias" e, aí literalmente, "tirando a roupa".

A câmera submersa na piscina traduzia de forma sugestiva "você me dá água na boca" ou "molhada de suor, de tanto a gente se beijar". Se o cidadão de bem não entendeu o que Rita cantava em "Mania de Você", aquele comercial da Ellus desenhou. É de se perguntar como a censura da ditadura militar deixou passar coisa tão explícita. Talvez a explicação seja a própria Rita, naquela altura do campeonato arrebentando o topo do pop nacional.

Proeza semelhante foi alcançada por "Lança Perfume", em 1980, em que Rita, já totalmente mainstream e no horário nobre da Globo, falava "me deixa de quatro no ato, me enche de amor", mas também sobre o "amor que tem cheiro de coisa maluca". A coisa maluca, loló para os íntimos, foi proibida nos anos 196o. Duas décadas depois, estava na boca de muita gente, não apenas por causa da música, mas por um revival alimentado por contrabandos do Paraguai e escancarada leniência das autoridades. Um falso momento de liberalidade, como tantos outros do período da repressão, anos depois de Rita ter sido presa em sua própria casa por uma contestada posse de maconha.

Os tempos mudaram. Um título da Folha que fazia referência à vida muito louca da cantora e compositora rendeu um tsunami de críticas ao jornal e uma perseguição implacável à repórter especial Laura Mattos, autora da reportagem.

O enunciado, "Rita Lee, rebelde desde a infância, se deixou guiar por drogas e discos voadores", acabou sendo trocado por "Drogas tiveram papel político na trajetória de Rita Lee, rebelde desde a infância". A mudança não ajudou a arrefecer a polêmica, já que o problema, por óbvio, não se encontrava nos discos voadores.

A caixa de entrada do ombudsman também encheu. De inúmeras críticas, as mais frequentes falavam de desrespeito do jornal, desespero por audiência e acusação de súbito conservadorismo. No Twitter, alguém lembrou da capa de Veja, de 1982, que noticiou a morte de Elis Regina com um histérico "Tragédia da Cocaína".

Laura, no dia seguinte, escreveu sobre seu "primeiro linchamento virtual". Contou que o título não foi feito por ela e que também não achou a escolha boa. Mais importante, ressaltou o risco de termos "relação menos consciente com as redes sociais". O trabalho depender das redes sociais é uma coisa, ser pessoalmente dependente delas é outra.

O texto que enroscou nas redes não era o principal da cobertura. Escrito também pela repórter, o obituário de verdade tinha como título "Morre Rita Lee, maior estrela do rock brasileiro e ícone dos Mutantes, aos 75 anos". As drogas surgem no subtítulo e em vários momentos da reportagem, sem, no entanto, atiçar qualquer apedrejamento.

A edição teve influência na reação dos leitores, mas o nó da questão é a luz lançada no lado B da vida da artista ou a necessidade que o jornal viu em fazer isso. O luto recomenda deixar coisas assim de lado, disse um dos mais educados a cutucar o jornal. Mas não dá para deixar de lado um cotidiano pesado que Rita só conseguiu equilibrar perto dos 60 anos, depois do nascimento da primeira neta. O problema está então na crueza da Folha e ou na recusa do público em ver sua estrela como ela era.

A um comentário de Leo Jaime, que perguntou o que o jornal estava fazendo, um seguidor no Twitter respondeu que a Folha estava "sendo @folha", uma crítica clássica a este diário. Outro comentário foi além: "Está reposicionando a marca como porta-voz da extrema-direita e do fascismo". É curioso ver o moralismo como argumento nos dois lados da contenda, mas é razoável imaginar a revolta contra o jornal não limitada à droga do título.

O histórico recente mostra uma Folha implacável com o governo de turno, desde antes da vitória nas eleições. Editoriais, em sequência e tom pesados, e reportagens contrariam a expectativa de muitos leitores, que aguardavam um período de tolerância e reconstrução. Gente que via e vê a tentativa de golpe do bolsonarismo como algo ainda latente, à espreita, e percebem o jornal longe de sua trajetória de cuidado com a democracia.

Reputação, aliás, que o deixou confortável para nadar contra a corrente e, por vezes, abusar da prática, como nesta última semana. A Folha pode não ter saído do trilho, mas parte de seu público acha que sim. Ou, como disse uma leitora, em discussão antiga, resta refém de seu próprio estilo. Que Santa Rita perdoe a todos.

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