Descrição de chapéu
Laura Mattos

Rita Lee e meu primeiro linchamento virtual

Para os agressores, só tenho a dizer que 'mais louco é quem me diz, e não é feliz'

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Laura Mattos
Laura Mattos

Jornalista e mestre pela USP, é autora de "Herói Mutilado: Roque Santeiro e os Bastidores da Censura à TV na Ditadura" (Companhia das Letras) e repórter especial da Folha

São Paulo

Eu estava em casa off-line na manhã desta terça-feira (9), quando soube da morte da Rita Lee. Vi que a equipe na Redação havia colocado no ar os textos biográficos que eu havia escrito sobre a cantora, atualizando-os com a triste notícia, além de acrescentar títulos e fotos.

Sou pouco ligada em redes sociais, uso mais para o trabalho e quase não falo de vida pessoal. Mas ontem resolvi misturar um pouco esses universos, porque sou muito fã da Rita Lee, tenho até coleção de CDs, dos quais não desapeguei apesar do streaming.

A cantora Rita Lee - Instagram/ritalee_oficial

Tirei, então, uma foto deles na estante e publiquei no Facebook e no Instagram, ao lado da imagem do texto principal sobre ela que eu havia escrito, com a legenda: "Escrever um obituário nunca é uma tarefa fácil, mas esse foi um dos mais difíceis pra mim". Encerrei a frase com um emoji da carinha com lágrima e coloquei a música "Minha Vida", da Rita. Eu estava pessoalmente comovida.

Começaram as curtidas e os comentários amigáveis dos meus "zilhões" de seguidores. No Instagram, tenho 400 (só 400 mesmo, não 400 mil). No Facebook são 1.173 amigos.

Eis que surgiram os primeiros xingamentos de gente que não fazia parte da minha rede. "Lixo", "bosta de texto" e por aí. Ok, pensei, só ignorar. Minha mãe me ligou com aquela delícia de corujice e preocupação maternas: "Filha, vou brigar com essas pessoas! Por que estão falando isso? Seu texto está tão lindo...".

Meu filho de 18 anos me escreveu do cursinho, preocupado. Havia visto no Instagram da Folha o tamanho da repercussão e o nível dos ataques. O gatilho foi um título dado a um dos textos escritos por mim, o que abordava, entre outros aspectos biográficos, a relação da cantora com as drogas. "Rita Lee, rebelde desde a infância, se deixou guiar por drogas e discos voadores". Não havia sido, de fato, uma boa escolha.

Falei com a Redação, já haviam trocado para um título mais adequado àquilo que o texto abordava e ao comedimento que se exige, especialmente em um momento de consternação como esse: "Drogas tiveram papel político na trajetória de Rita Lee, rebelde desde a infância". Mas o ódio já estava no ar.

Eu não quis nem ver, não estou no Twitter justamente por conta desse ambiente agressivo e tresloucado, mas tive alguma noção do que se passava quando uma sobrinha ligou chorando porque estavam postando fotos minhas com xingamentos inacreditáveis.

Meu marido, que havia tido um mal-estar na noite anterior e, logo cedo, estava em um pronto-socorro, não conseguiu se desconectar da confusão e reagiu quando me chamaram de "vaca" e disseram que eu só podia ter feito "o teste do sofá".

Invadiram até o meu perfil no LinkedIn, em que eu nem tinha tido tempo de postar sobre a Rita Lee, colocando comentários em posts anteriores, inclusive em um no qual eu divulgava um podcast que produzi e apresento, curiosamente sobre a relação dos jovens com as redes sociais e esse universo de ódio e desinformação online.

Uma outra camada de discussão se abriu para além da questão do título, a de que era desrespeitoso falar sobre as drogas na morte da cantora. Dois colunistas da Folha, Mariliz Pereira Jorge e Tony Goes, resumiram o que eu penso disso: Rita Lee era a primeira a escancarar a sua relação com drogas e álcool, sem autopiedade e com uma transparência comovente, e certamente estaria "pouco se f..." e rindo dessa celeuma.

Ela era muito maior do que a relação com as drogas e o álcool, obviamente, e os textos se debruçaram sobre essa imensidão, chamando-a de "estrela", "maior roqueira do Brasil". Mas a dependência química era, sim, um aspecto crucial, tanto que transpassa toda a sua autobiografia, e não poderia deixar de ser retratada no obituário.

Depois de fechar minhas redes sociais, acalmar familiares e amigos queridos que me escreveram, e tentar dormir sobre essa história, a dúvida nesta manhã, 24 horas e o meu primeiro linchamento virtual depois, era a de escrever ou não sobre a polêmica.

Diante de tanto ódio, descontrole e falta de noção, eu deveria me expor ainda mais? Poderia soar como satisfação a quem não merece? Ignorar não seria a melhor resposta? O certo não seria deixar isso morrer logo, como quase tudo na internet?

Quando levava os meus dois filhos à escola hoje, aproveitei para refletir com eles sobre tudo isso. Disse que estava orgulhosa de mim mesma pelo fato de ter conseguido ficar relativamente distante das agressões e de como percebi, na pele, o risco que é ter uma relação menos consciente com as redes sociais. Falamos sobre um mundo maior e mais real, que é justamente esse do caminho que fizemos à escola.

E então, ao voltar para casa, resolvi escrever este texto pelos meus meninos. Para os agressores, só tenho a dizer que "mais louco é quem me diz, e não é feliz".

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.