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Como Rita Lee foi do hard rock esperto a uma química pop irretocável

Morta nesta segunda-feira, cantora evoluiu de menina bonita dos Mutantes para a rainha mais pop que o rock brasileiro teve

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São Paulo

Nos anos 1960, para muita gente Rita Lee, morta nesta segunda-feira (8) aos 75 anos, era a menina bonita e afinada dos Mutantes, mas nada além disso. Mesmo quem acompanhava de perto a banda não acreditava que ela tivesse mais a oferecer entre a genialidade de Arnaldo Batista e a exímia técnica de Sérgio Dias. Mas Rita tinha algo a dizer, e saiu do cerco dos meninos em 1970, começando sua carreira solo ainda fiel ao trio.

A cantora Rita Lee em show no Vale do Anhangabaú em 2013 - Julia Chequer/Folhapress

Os dois primeiros discos, "Build Up", de 1970, e "Hoje É o Primeiro Dia do Resto da Sua Vida", de 1972, não contribuíram para aumentar a expectativa sobre ela. Houve o sucesso de "José", no álbum de estreia, mas era a versão de Nara Leão para um hit internacional do francês Georges Moustaki. O resto do repertório tinha muitas canções em parceria com Arnaldo, não desligando seu trabalho dos Mutantes.

Foi com o terceiro álbum, "Atrás do Porto Tem uma Cidade", de 1974, que a Rita compositora deu as caras por completo, mostrando também uma banda de apoio, Tutti Frutti. No vinil, mais voltado ao hard rock, pelo menos duas faixas que a acompanhariam por anos —"Menino Bonito" e, principalmente, "Mamãe Natureza". Apesar de alguma repercussão, sua música ainda ficava em segundo plano diante das fofocas sobre sua ruptura com o antigo grupo.

Então Rita mostrou que sempre é bom estar no lugar certo e na hora certa. Ela assinou contrato com a Som Livre, gravadora do grupo Globo, justamente quando seus diretores perceberam a força dos discos de trilhas sonoras das novelas. Depois de algumas trilhas campeãs de venda, como "Selva de Pedra", a ideia foi contratar artistas emergentes e turbiná-los com inclusão de canções nas novelas e muita divulgação em publicidade na TV Globo.

"Fruto Proibido", de 1975, chegou a meio milhão de cópias vendidas, mas não deve seu sucesso apenas ao impulso promocional da Som Livre. O álbum trouxe pérolas de rock bem-humorado, como "Agora Só Falta Você", "Luz Del Fuego" e "Esse Tal de Roque Enrow", além de um hino incontestável para várias gerações, "Ovelha Negra". Rita, que já era amiga próxima de gigantes como Erasmo Carlos, Gilberto Gil e Caetano Veloso, dali em diante passava a ter o mesmo cacife de vendedora de discos.

Sua colaboração com o Tutti Frutti, notadamente com o guitarrista Luis Sérgio Carlini, rendeu mais dois álbuns, "Entradas e Bandeiras", de 1976, e "Babilônia", de 1978. O primeiro desses ficou ofuscado pelo sucesso estrondoso do disco anterior, mas "Babilônia" consolidou o dom de compositora pop, lançando hits perenes como "Miss Brasil 2000", "Jardins da Babilônia", "Eu e Meu Gato" e "Que Loucura".

Rita passaria em seguida pela segunda grande ruptura da carreira. Ao se desligar do Tutti Frutti, a mistura de rock e bom humor fez um desvio para um pop mais universal, flertando com outros gêneros. Uma parcela dessa metamorfose veio com a aproximação de Roberto de Carvalho, outro guitarrista excepcional a cruzar seu caminho.

"Rita Lee", o álbum de 1979, trouxe um refinamento pop impossível de ser deixado de lado pelas rádios. E mais uma vez Rita teve um impulso promocional correndo por fora, o comercial de TV de uma marca de jeans que levou "Mania de Você" a ser a música do ano. Balada lasciva e, claro, bem-humorada, exibiu uma pimenta sensual que percorria muitas faixas, como "Doce Vampiro". A ligação com Roberto passaria a guiar sua carreira.

Com mais dois hits, "Chega Mais" e "Papai, Me Empresta o Carro", iniciou o período auge de Rita no mercado fonográfico, vendendo 800 mil cópias. Depois, "Rita Lee", de 1980, emplacou "Lança Perfume", "Baila Comigo", "Caso Sério" e "Ôrra Meu!", esta o único momento de rock trepidante no álbum. Nesta fase, os antigos fãs roqueiros da cantora às vezes a criticavam, como se ela fosse uma "traidora do movimento".

A boa fase continuou com "Saúde", de 1981, "Rita Lee e Roberto de Carvalho", de 1982, e "Bombom", de 1983, além de uma leva de canções que grudam no ouvido —"Banho de Espuma", "Saúde", "Flagra", "Cor-de-Rosa Choque", "On the Rocks" e "Desculpe o Auê". Mas a crítica não perdoou "Bombom", apontando que a gravação de um álbum por ano havia esgotado a fonte criativa da dupla, jogando o som de Rita numa fórmula gasta.

Internações por problemas com drogas adiaram o próximo lançamento para 1985. "Rita e Roberto" surgiu como um disco singular em sua carreira e talvez um dos melhores que gravou. O humor um tanto adolescente foi trocado por versos mais cínicos e venenosos. "Vírus do Amor" e "Noviças do Vício" têm letras primorosas e são alguns dos melhores resultados instrumentais neste disco em que a dupla conseguiu sintetizar uma assinatura pop irresistível.

No entanto, no impacto do aparecimento das bandas que seriam as mais populares do rock nacional, como Titãs, Legião Urbana e Paralamas, a recepção do público foi gelada. "Rita e Roberto" seguiu como um favorito de poucos e certamente o último álbum de Rita com sua inegável criatividade.

Entre 1987 e 1997, ela lançaria mais sete discos, sem a mesma repercussão. Veio então sua participação no projeto Acústico, da MTV. As versões em voz e violão de hits conhecidos caíram no colo dos fãs novos e antigos, transformando "Acústico MTV" em um campeão de vendagem em 1998.

Depois, ela repetiria a dose com mais registros ao vivo, a partir de eventos bancados pela MTV e pelo Multishow, e gravaria mais quatro álbuns de estúdio até o último, "Reza", de 2012.

Claro que a discografia de Rita tem momentos interessantes aqui e ali depois de 1987. Mas é inegável que sua produção no período, dividida com investidas bem-sucedidas na literatura, não é páreo na comparação com seu trabalho anterior.

Ela evoluiu do hard rock esperto a uma química pop irretocável que alcançou entre 1974 e 1985. Por esta fase, Rita Lee é a cantora mais pop que o rock brasileiro já teve.

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