Siga a folha

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

Livro expressa a dificuldade de todos em admitir sua identidade

Em 'In the Darkroom', Susan Faludi faz longo ensaio sobre seu pai, que se assumiu transexual aos 76

Assinantes podem enviar 7 artigos por dia com acesso livre

ASSINE ou FAÇA LOGIN

Continue lendo com acesso ilimitado.
Aproveite esta oferta especial:

Oferta Exclusiva

6 meses por R$ 1,90/mês

SOMENTE ESSA SEMANA

ASSINE A FOLHA

Cancele quando quiser

Notícias no momento em que acontecem, newsletters exclusivas e mais de 200 colunas e blogs.
Apoie o jornalismo profissional.

Em 2016, a premiada escritora norte-americana Susan Faludi lançou "In The Darkroom", um longo ensaio biográfico sobre seu pai, o fotógrafo judeu de origem húngara Steven Faludi. Ela examina os vários aspectos da sua identidade que o teriam encorajado na tardia decisão de assumir-se transexual aos 76 anos de idade.

O livro, no entanto, não se restringe a uma narrativa sobre a transição de gênero do seu pai, mas expressa a dificuldade que todos possuem em admitir a sua própria identidade. Afinal, diz a autora, toda expressão pessoal configura-se a partir dos valores que herdamos ou que nos são atribuídos pelos outros, bem como das nossas várias tentativas de subvertê-los.

No caso de Susan Faludi, esta dificuldade revela-se através de uma complicada relação com o pai que, na juventude, se comportara de maneira despótica e até mesmo violenta, ameaçando a integridade física da filha e da ex-mulher, na tentativa de portar-se como homem e chefe de família.

A jornalista Susan Faludi com o pai, Stéfanie, em 2010, em Budapeste - Russ Rymer

Comportamento que a escritora descreve, em uma entrevista para a jornalista Lisa Napoli, como sendo uma das justificativas para a sua dedicação ao jornalismo e a literatura feminista, exemplificada tanto pelo seu trabalho em "Backlash: O Contra-Ataque na Guerra Não Declarada Contra as Mulheres" (Rocco), a respeito das reações ao sucesso inicial do feminismo da década de 1970, como em seu estudo sobre a crise da masculinidade após a Segunda Guerra Mundial em "Domados: Como a Cultura Traiu o Homem Americano" (Rocco).

No caso de Steven Faludi, esta dificuldade em admitir a si próprio revela-se uma incógnita até o momento em que a sua filha passa a investigar o papel de gênero, tradição judaica e história húngara na vida do pai, permitindo-nos um acesso privilegiado a uma personalidade dilacerada por traumas e conflitos que igualmente definem o debate político da nossa época.

Tal como as guerras culturais e o discurso antiglobalista adotado por representantes da nova direita, que justificam manifestações de antissemitismo, tentativas de censura a intelectuais e artistas, bem como crescentes ondas de violência contra mulheres, homossexuais e outras minorias.

Segundo a autora, da mesma maneira que a surpreendente transição do seu pai, a história húngara seria composta de momentos aparentemente dissociados em que cada abertura seguir-se-ia de um fechamento ainda mais violento, sem contar com qualquer justificativa aparente para adoção de posicionamentos extremos e diametralmente opostos.

A identidade magiar seria caracterizada por uma dinâmica entre o revanchismo político e o revisionismo histórico. Ressaltando-se, como exemplo, o período de emancipação da população judia, no final do século 19, permitindo que todos compartilhassem uma única identidade nacional, com a ascensão de Budapeste a uma das capitais culturais da Europa Oriental.

Passando pelas reações ao Tratado de Trianon, em 1920, o retrocesso nacionalista durante o período Entreguerras, a colaboração com o Terceiro Reich na Segunda Guerra Mundial. Ainda a retomada democrática após 40 anos de Regime Comunista, de 1949 a 1989, a entrada do país na União Europeia em 2004, o que levou a superlativação de valores liberais, e, finalmente, a recessão econômica de 2008 com a renovada popularidade de grupos reacionários de extrema direita, a culminar com o atual governo de Viktor Orbán.

Na suposição de que a transição paterna fosse um reflexo desta realidade, Susan Faludi comenta de uma das suas caminhadas pelas ruas de Budapeste: “Esta ausência de passado parecia contar com a aprovação de meu pai. A Budapeste que ela gostaria que eu visse sofria do mesmo estranho apagamento, estava intencionalmente livre do capítulo que deixara profundas cicatrizes em cada prédio e, também, na personalidade de meu pai. Em vários momentos, eu refleti sobre as palavras do Prêmio Nobel Imre Kertész sobre o seu torrão natal: ‘Nada fora recuperado, tudo fora mascarado por belas cores. Budapeste é uma cidade sem memória.’”

O que chama a atenção neste livro é a tentativa de diálogo entre filha e pai, a espelhar algumas das mesmas dificuldades que muitos encontram no relacionamento familiar, em relação aos valores que informaram as suas educações e que hoje colidem de forma espantosa com a radicalização das perspectivas políticas de alguns dos seus parentes e amigos.

Assim, uma das indagações suscitadas por Susan Faludi refere-se a como tudo que aparentemente conhecemos dos outros e, principalmente, dos os nossos pais, muitas vezes não passa de uma projeção do que acreditamos saber de nós mesmos.

Antes de se reencontrar com Steven em 2004, Susan tinha a impressão de que ele era mais um exemplar da rígida masculinidade do pós-guerra, a evitar qualquer expressão de intimidade com os filhos. Deparou-se, no entanto, com Stéfanie, uma versão do seu pai que, aos poucos, tornou-se aberta ao diálogo, a demonstrar-se cada vez menos atormentada por um passado de violência.

Esquecemo-nos, portanto, de que a maneira como cada um comunica as suas preferências é consequência de uma série interminável de experiências conflitantes a demarcar o que existe de intransferível e único em cada indivíduo.

Há momentos em que não conseguimos tolerar as nossas lembranças nem aquilo que somos. Em outros, conseguimos fazer as pazes com uma parte essencial de nós mesmos. A história de Stéfanie Faludi nos ensina que, enquanto houver vida, esta dinâmica cumprirá um importante papel na caracterização da nossa identidade.

Em todo o livro, Susan Faludi evita render-se ao clichê de que a experiência de certos eventos nos transforme em pessoas morais, compreensivas e acolhedoras.

Mesmo após a transição, Stéfanie permanece uma figura evasiva, controladora e até mesmo preconceituosa, mas o impacto dos seus golpes é amortecido pela segurança que a filha adquire ao constatar que muito do que se supõe inadmissível no comportamento do pai é a expressão de um conteúdo existencial que ainda não fora suficientemente explorado.

Receba notícias da Folha

Cadastre-se e escolha quais newsletters gostaria de receber

Ativar newsletters

Relacionadas