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Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

Amós Oz apontou papel do questionamento de verdades no judaísmo

Experiência de mundo e bagagem cultural se somam a perambulações da razão no fazer filosófico

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Outro dia, no Instagram, me perguntaram como eu faço para conciliar o meu trabalho enquanto filósofa com a prática do judaísmo.

Respondi que, da maneira como me foi repassado, o judaísmo compreende elementos que também são fundamentais tanto para o estudo da filosofia e da literatura quanto para a pesquisa acadêmica, ao exemplo da importância que a tradição judaica atribui à educação, ao debate e, principalmente, ao questionamento de verdades que, muitas vezes, gostaríamos de tomar por certas, mas quase sempre necessitam de verificação.

O escritor israelense Amós Oz participa do Fronteiras do Pensamento, em São Paulo, em 2017 - Folhapress

"Os Judeus e as Palavras" (2012), ensaio do escritor israelense Amós Oz (1939-2018) em coautoria com a sua filha, a historiadora Fania Oz-Salzberger, é uma excelente porta de entrada para quem deseja refletir um pouco melhor sobre essa questão. Pois, logo nas primeiras páginas, os autores recorrem a uma passagem do Talmude para ilustrar a relação dos judeus com os livros, ressaltando como aqueles três elementos que mencionei logo acima, ou seja, o estudo, o debate e o questionamento, estariam intimamente relacionados à prática judaica.

Pai e filha se referem à célebre narrativa do Forno de Achnai, que apesar de bastante complexa, pode ser resumida da seguinte maneira: um grupo de rabinos discute se um determinado tipo de fornalha seria ou não adequado para uso ritual. Na ocasião, o rabino Eliezer discorda dos demais e faz de tudo para justificar o seu posicionamento, porém não os convence.

A disputa entre os rabinos se intensifica e o próprio Deus resolve intervir em favor do dissidente, questionando: "Por que discutis com Rabi Eliezer, vendo que em todos os assuntos a Halachá [a Lei] concorda com ele!". Ao que Rabi Yehoshua retruca, citando uma passagem do Deuteronômio: "Não está nos Céus!".

E o outro, Rabi Yirmiyah, reforça: "A Torá já foi dada no Monte Sinai; nós não prestamos atenção a uma Voz Celestial porque Vós há muito escrevestes na Torá no Monte Sinai, [citando Êxodo]: ‘Segundo a maioria deve-se inclinar'". Algum tempo depois, Rabi Natan se encontra com o profeta Elias e pergunta o que Deus achou de toda aquela polêmica. O profeta então comenta: "Ele sorriu e disse: 'Meus filhos derrotaram a Mim, meus filhos me derrotaram'".

Para Amós Oz e sua filha essa passagem do Talmude nos ensina que, em uma discussão acadêmica, "o julgamento de uma maioria [de sábios] bate o Todo Poderoso". Pois, ainda segundo os autores: "O Forno de Achnai sinaliza a transição da profecia para a exegese [...]. Foi-se o profeta solitário com uma ligação direta com o Todo Poderoso. Entra o intérprete, em constante conversa com os seus colegas, aplicando a inteligência humana aos textos sagrados, agora sujeitos a múltiplas leituras".

Assim, nunca havia me passado pela cabeça que talvez pudesse existir uma incompatibilidade entre filosofia e judaísmo. Pois, além de encarar a prática judaica como uma atividade de estudo, debate e questionamento, sempre enxerguei o que eu faço enquanto filósofa como uma espécie de prolongamento da minha experiência de vida.

Desse modo, se costumo escrever sobre a relação entre literatura e filosofia porque esse é um tema que me interessa desde a época de ensino médio, quando me encantei pela obra de autores como Goethe e Rilke, também não vejo problema em admitir que faço filosofia a partir do diálogo com uma determinada tradição e, que, no meu caso, essa tradição é atravessada pelas referências que informam a complexa trama da minha identidade.

Há por aí quem se iluda e acredite que, para alguém se dedicar ao estudo da filosofia, essa pessoa deva, de alguma forma, se assemelhar à imagem muitas vezes distorcida do que ele considere ser um filósofo de verdade, como se nessa categoria coubesse apenas um determinado tipo de indivíduo, nascido em um certo lugar e pertencente a uma cultura específica.

No entanto, supor algo assim é ignorar como a história do pensamento também é múltipla e pode oferecer aos seus estudantes diferentes pontos de acesso por meio dos dos quais, talvez, passamos a nos sentir um pouco mais habilitados a questionar o que significa fazer filosofia a partir das nossas próprias circunstâncias. Isto é, levando em consideração o que a nossa experiência de mundo e bagagem cultural têm a acrescentar às intermináveis perambulações da razão.

Foi isso o que aprendi no último mês ao participar de um evento acadêmico promovido pela Universidade de Hamburgo sobre a importância do ceticismo na filosofia, no judaísmo e na cultura em geral. Aprendizado esse que certamente levarei comigo para o resto da vida.

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