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Jornalista e escritora, publicou os livros "Karmatopia: Uma Viagem à Índia", ​"Sob Pressão: A Rotina de Guerra de um Médico Brasileiro" (com Marcio Maranhão) e "Samuel Wainer: O Homem que Estava Lá​"

Romance noir de vencedora do Nobel é libelo contra a estupidez

Livro de Olga Tokarczuk me levou da ensolarada Bahia para o frio do inverno polonês

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Impossível colocar Olga Tokarczuk e o seu "Sobre os Ossos dos Mortos" numa caixinha. Ao mesmo tempo, um romance noir, daqueles com vários cadáveres e um assassino insondável, uma ácida comédia feminista e um drama filosófico. De férias no sul da ensolarada Bahia, o livro me arremessou para o vale Klodzko, em pleno inverno da Polônia.

"Nosso planalto teria, então, o formato de uma meia-lua cercada de um lado pelos Montes de Prata, uma pequena e baixa cadeia de montanhas, compartilhada entre nós e os tchecos, e, do outro lado, o lado polonês, pelas Colinas Brancas."

nas primeiras páginas, Janina Duszejko, a narradora, nos arrebata. Sarcástica, brilhante, engraçada e profundamente atormentada pela imbecilidade humana, ela exerce com uma liberdade invejável —e hilária — o papel que lhe cabe naquela estranha comunidade: a velha louca.

Talvez o ageísmo, o preconceito por idade, seja a primeira questão contemporânea a saltar da obra. Mulher, sozinha, sem filhos e, sobretudo, velha, só restará à Janina romper todos os limites para que sua voz seja ouvida. No gélido planalto, seus inimigos usam armas e assassinam animais indefesos.

"Por que matar um animal é esporte e matar um ser humano, assassinato?", ela se pergunta. Já tendo chegado à idade em que "precisa lavar os pés antes de dormir, em caso de ter que ser removida por uma ambulância no meio da noite", Janina se divide entre três paixões: a astrologia, a luta incessante contra os caçadores e William Blake. Diga-se de passagem, o livro é um hino ao poeta.

Vencedora do Nobel de Literatura, em 2018, Olga Tokarczuk constrói a personagem com tal maestria que a sensação é que a qualquer momento ela vai sair caminhando pela sala, reclamando das moléstias crônicas. Uma das manias de Janina é colocar apelido nos vizinhos, conforme suas características: Pé Grande, Esquisito, Boas Novas...

"Que falta de imaginação ter nomes e sobrenomes oficiais. Ninguém jamais se lembra deles, pois são tão banais e alheios à pessoa que não possuem nenhuma ligação com ela", comenta, excomungando a própria alcunha: "Além disso, todas as gerações têm suas modas e, de repente, todos se chamam Margarida, Patrício ou – deus me livre – Janina".

O mistério se instaura na trama quando Pé Grande aparece morto. À primeira vista engasgara-se com o osso de uma corça por ele assassinada. Porém, outros cadáveres vão surgindo em cena, enterrando, aos poucos, a tese da morte acidental. Janina levanta a sua própria linha de investigação: a vingança dos animais, que estariam dando o troco nos predadores humanos.

Montanha no Parque Nacional de Tatra, na Polônia - Kacper Pempel - 14.jan.22/Reuters

A esta altura, eu já me preparava para fechar o livro, temendo que bichos começassem a falar. Tenho sérios problemas com realismo fantástico. A reviravolta, porém, logo viria, surpreendente, como cada linha nesse denso, divertido e anárquico romance. Em tempos obscurantistas, com os direitos da mulher e dos animais sob ataque, "Sobre os Nossos Ossos" é um libelo contra a estupidez.

Numa frase, aliás, Janina resume o estado das coisas: "Vi a moça grávida num banco lendo um jornal e pensei, de repente, que toda inconsciência é um estado abençoado. Como seria possível ter consciência de tudo isso e não sofrer um aborto espontâneo?".

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