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Preconceito contra idosos cresce na pandemia, diz ex-diretor de envelhecimento da OMS

Médico diz que tem aumentado a violência doméstica contra os mais velhos durante isolamento

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São Paulo

O médico gerontólogo e ex-diretor da OMS Alexandre Kalache, 74, afirma que o preconceito relacionado à idade tem aumentado durante a pandemia de Covid-19 e que a voz dos mais velhos, principal grupo de risco para a doença, é silenciada.

“‘Deixa morrer! Já viveu muito! E daí?’ Parece que ninguém se importa mais a morte de alguém que já viveu. É o que eu chamo de gerontocídio”, afirma o ex-diretor da área de envelhecimento da OMS (Organização Mundial da Saúde).

Alexandre Kalache, médico gerontólogo e ex-diretor de envelhecimento do OMS
Alexandre Kalache, médico gerontólogo e ex-diretor de envelhecimento do OMS - Emiliano Capozzoli-22.nov.2019/Folhapress

Para ele, o fato de 30% das mortes por Covid-19 ocorrerem antes dos 60 anos mostra que, além da idade cronológica, a desigualdade social é um dos principais determinantes da pandemia.

“As pessoas envelhecem prematuramente e mal. Há pessoas com 45, 50, 55 anos que já estão velhas. As desigualdades sociais fizeram com que elas tivessem precocemente as famosas comorbidades.”

Presidente do Centro Internacional da Longevidade Brasil, Kalache diz que tem aumentado também a violência doméstica contra idosos durante o isolamento social.

“A última coisa que um idoso, uma idosa, quer fazer é ligar para a polícia e acusar o seu filho, a sua filha, o seu neto.”

Um grupo de intelectuais europeus publicou nesta semana carta aberta denunciando a ‘cultura do descarte’ do idoso durante a pandemia. Isso ocorre também no Brasil? Muito. Todo preconceito de idade, que eu chamo de ‘idadismo’, que já existia contra os idosos apenas aflora, aumenta com a questão da Covid. ‘Deixa morrer! Já viveu muito! E daí?’ Parece que ninguém se importa mais com a morte de alguém que já viveu. É o que eu tenho chamado de gerontocídio.

A nossa diferença em relação aos países europeus é que lá a sociedade civil reage. Você tem muitas organizações não governamentais [ONGs] falando pelo e com o idoso. Aqui ninguém fala pelo idoso. Eu vesti totalmente o chapéu do idoso.

Eu não quero que ninguém me apresente como ex-diretor da OMS ou pelos meus títulos acadêmicos. Eu sou um idoso. A gente cansa de ver experts dando depoimentos mas ninguém se coloca como idoso. O idoso é sempre o outro, não tem nada a ver comigo.

No Brasil, não temos ONGs, conselhos de idosos atuando de forma efetiva e eficaz, a começar pelo federal. Alguns conselhos estaduais e municipais ainda gritam um pouco, mas é abafado. No Brasil, a voz do idoso é silenciada.

Como estão hoje as políticas nacionais voltadas aos idosos? O CNDI (Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa Idosa) sofreu uma intervenção ano passado por parte do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, da Damares [Alves]. São pessoas totalmente ignorantes nas questões de envelhecimento e que não têm interlocução com a sociedade civil. Está tudo contaminado por um discurso que discrimina.

Um subgrupo da população idosa, os LGBTIs, por exemplo, já é marginalizado, vive só, a família já pode ter se afastado há muito tempo, os vizinhos não toleram. Você cria bolsões de pessoas em que terão riscos muito aumentados durante essa pandemia.

Embora os idosos representam o maior grupo de risco para o coronavírus, muitas pessoas abaixo de 60 anos também têm morrido na pandemia por conta de comorbidades. Estamos envelhecendo mais cedo? Sim, esse corte de 60 anos ou mais é superficial. As pessoas envelhecem prematuramente e mal. Há pessoas com 45, 50, 55 anos, que já estão velhas. As desigualdades sociais fizeram com que elas tivessem precocemente as famosas comorbidades.

Cerca de 30% das mortes no Brasil por Covid acontecem antes dos 60 anos. O que mata não é só você ter 75, 80 anos. O que mata são as comorbidades. Tanto que a gente vê pessoas com cem anos se recuperando.

Na Itália, na Espanha morreram muitos velhos. Aqui, a desigualdade social será determinante. A base da pirâmide, os ferrados, os negros, é que vão sofrer mais.

O fator idade também tem sido usado como critério na alocação de respiradores. Como o sr. vê isso? É a falta de conhecimento sobre envelhecimento do profissional que está tendo que fazer essa escolha de Sofia. Eles deveriam ter informações suficientes de que o que deve comandar essa escolha é a comorbidade, a capacidade funcional da pessoa.

Isso muitas vezes nem entra nos protocolos dos hospitais. Para eles, é ‘confortável’ decidir pensando ‘quem já viveu, dança; vamos dar oportunidade para aquele mais jovem’.

De novo, é uma mistura do idadismo, do preconceito gritante e da ignorância. Eu sei que é uma escolha muito difícil, não estou minimizando, mas é possível fazê-la com mais critério.

No Brasil, 20% dos lares têm nos idosos a principal fonte de renda da família. Ou seja, também do ponto de vista econômico eles são imprescindíveis. Sim! São eles que garantem a comida para os netos, remédios para os filhos. E, ainda assim, sofrem todo o tipo de abuso, financeiro, físico, emocional, psicológico.

Fora aqueles que vivem só. Isolamento é uma coisa, solidão é outra. Temos 10% das pessoas idosas, cerca de 3 milhões, que vivem só. O Estado responde: a família tem que tomar conta. Que família? Essa família já abandonou esse idoso há muito tempo, ou vive muito longe. A gente vê muito velho ainda trabalhando como vigia, porteiro.

O país já começa a contabilizar mortes por Covid em residenciais de idosos. O fato de haver muitas instituições que funcionam de forma irregular agrava ainda mais os riscos? É grande a preocupação com essas inúmeras casas de repouso que fogem de qualquer tipo de fiscalização. Grosso modo, temos 1% de idosos institucionalizados, um universo de mais de 300 mil pessoas que estão muito desprotegidas, como estão também as pessoas que ali trabalham. Não têm indumentária adequada, não sabem o que fazer, são profissionais pouco treinados.

O profissional da enfermagem, quando tem, cuida de 15 pessoas. E esses idosos estão mais sozinhos do que nunca. Aqueles que ainda recebiam visita da família deixaram de receber.

Nesse isolamento social temos visto aumento da violência doméstica contra mulheres e crianças. Os idosos também sofrem com isso? A gente sabe que têm crescido os casos, que houve um aumento de 50% das ligações nos canais de denúncia. Mas as estatísticas oficiais são muito tímidas. Isso é só a ponta do iceberg.

A última coisa que um idoso, uma idosa, quer fazer é ligar para a polícia e acusar o seu filho, a sua filha, o seu neto. Ainda mais em tempos de isolamento social em que ele está sendo monitorado o tempo todo. Isso é muito perverso.

Há relatos de que muitos idosos e idosas têm relutado em ficar em casa e estão dando escapadinhas. Por que essa resistência? Atualmente está tão fragmentada e confusa a mensagem de isolamento, com o presidente dizendo uma coisa, governador e prefeito dizendo outra, que as pessoas não sabem em quem acreditar.

Isso se agrava quando a gente sabe que 30% dos idosos são analfabetos. Eles veem o presidente sem máscara a maior parte do tempo, sai par rua, vai comer pipoca, fica complicado para as pessoas perceberem a importância do isolamento, acreditar em evidências, na ciência.

O fato de terem sobrevivido a tantas doenças também não acaba dando aos idosos uma falsa sensação de proteção? De uma certa forma, sim. Os idosos são o grupo de maior risco, porém, são os mais resilientes. Nós já passamos por poucas e boas, conseguimos ver a luz no fim do túnel.

Na OMS, lideramos projetos com idosos em situações de emergência, que passaram por guerras, vulcões, terremotos, tsunamis, enchentes, incêndios. Em todas essas situações, os idosos, junto com as crianças, eram as pessoas mais vulneráveis, mas eram também os mais resilientes na reconstrução.

É o idoso que tem aquela capacidade de ver a luz no final do túnel. Isso que está faltando para a gente. Estamos encapsulado nessa vida do imediato, do tudo rápido. Quem sabe depois da Covid a gente se mova com mais calma?

Qual o aprendizado dessa pandemia? A Nova Zelândia foi um dos países modelos no enfrentamento e continua sendo, com um número bem baixo de casos de Covid, todos eles muito bem acompanhados.
Mas o interessante é que entre os maoris [povo indígena que representa 20% da população], a proporção de casos é ainda mais baixa. E eles são os mais pobres, o que nos levaria a pensar o contrário, já que nos outros países, os mais pobres são os mais atingidos.

O que explica isso? Os maoris têm na ancestralidade, na tradição oral, a memória do que foi a gripe espanhola de 1918. Essas tradições orais são contadas de geração em geração e mantidas pelas pessoas mais idosas.

Assim que souberam o que estava acontecendo na China, eles fizeram um autoconfinamento, entraram em quarentena, antes mesmo de o governo determinar. É um exemplo do papel do idoso e de como as tradições devem ser mantidas e repassadas.


RAIO-X

Alexandre Kalache, 74, graduado em medicina, doutor em saúde pública pela Universidade de Oxford. Trabalhou por 14 anos como diretor do Programa Global de Envelhecimento e Saúde da Organização Mundial da Saúde (OMS). É presidente da Centro Internacional da Longevidade Brasil, membro do conselhos consultivos na OMS, no Fórum Econômico Mundial e na Associação Mundial de Demografia e Envelhecimento

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