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Escritor e ensaísta, autor de "Notas sobre a Esperança e o Desespero" e “A Era do Niilismo”. É doutor em filosofia pela USP.

Teologia oriental ou ortodoxa é uma das tradições cristãs mais belas

Religiosos entendem que o contato com as energias incriadas de Deus pode provocar uma transformação ontológica no místico

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Uma das literaturas mais ricas na teologia cristã são as narrativas de teor místico —a experiencia direta de Deus. Dois reparos: o cristianismo não detém o monopólio das narrativas místicas. Elas existem tanto no judaísmo quanto no islamismo.

Seguramente nas religiões do extremo oriente —que desconheço— também existem.

Evidentemente, que contextos culturais e linguísticos impactam essas narrativas de modo profundo e não podia ser diferente, uma vez que religiões são continentes culturais.

Ilustração de Ricardo Cammarota para coluna de Luiz Felipe Pondé de 8 de abril de 2024 - Folhapress

Um segundo reparo, este epistemológico: as abordagens dessas narrativas se diferenciam segundo seus aspectos sociais, políticos, de gênero, linguísticos, históricos e teológicos, para citar algumas dessas abordagens distintas.

Uma das tradições cristãs mais belas é a da teologia ortodoxa, cujas igrejas mais significativas são a grega e a russa.

Os ortodoxos entendem que o contato direto com as chamadas energias incriadas de Deus causa uma transformação ontológica no místico.

Por ser ontológica, portanto, profunda, essa transformação impacta a psicologia, a cognição, a volição —vontade— e o intelecto.

O místico passa a ser, como diz o escritor grego de Creta Nikos Kazantzaki (1883-1957) no seu "Relatório a El Greco" —numa tradução direta da edição grega—, da "raça de Deus".

A transformação do intelecto se chama "metanoia". "Nous" em grego é intelecto. Portanto, a cognição será atravessada pela presença de Deus no modo de pensar e enxergar o mundo. O mundo tem outra luz e outra cor. O místico em metanoia pensa diferente e entende as coisas de forma estranha ao mundo natural e comum.

A visita de Deus, como se costuma dizer na ortodoxia, "taboriza" a pessoa —referência a transfiguração do Cristo no monte Tabor, passagem do evangelho. O indivíduo "taborizado" emana uma luz estranha que tem por efeito desarticular as misérias do mundo à sua volta. Pessoas "taborizadas" rompem com os falsos acordos do mundo e trazem para eles a doçura de Deus.

Dois personagens na obra de Dostoiésvki (1821-1881) apresentam esses traços. Sonia, a prostituta santa de "Crime e Castigo", e o príncipe Minchkin do "Idiota". Ela desarticula o leitor que diante da vida que tem não apresenta rancor ou medo algum, mas apenas ama sem esperar nada em troca. Ele, absolutamente desinteressado no seu próprio "eu", sente o sofrimento do outro antes mesmo deste ter consciência de que sofre.

O "idiota de Deus" é um personagem da tradição russa religiosa que parece um idiota, mas, na verdade, transcende o caráter "defendido" no homem. A metanoia o faz parecer um idiota. Como no romance citado, Minchkin diz em certo momento: "Eu sei que pareço um idiota, mas isso se deve à minha doença". Ele era epiléptico como o próprio Dostoiévski. Epilépticos seriam figuras atravessadas pela violência divina, para muitos no passado.

A personalidade mística é descentrada de si mesma —quase diria que no século 21 seria impossível uma tal personalidade existir em meio ao narcisismo boçal dos identitarismos e do marketing existencial que assolam o mundo.

Esse descentramento pode vir acompanhado da quase total falta de consciência acerca do processo de "taborização" em si. Os outros, como no caso do príncipe Minchkin, percebem a transformação sem que ele tenha a mínima consciência dela.

Voltando a Kazantzaki. O autor grego se vê diante de seu conterrâneo de Creta —mas que viveu em Toledo, na Espanha—, o pintor El Greco (1571-1614), como alguém da "sua raça". O livro descreve a biografia espiritual de Kazantzaki, sua ascese e travessia do deserto, travessia presente em qualquer experiência espiritual que merece assim ser chamada.

Aliás, as experiências espirituais de consumo hoje em dia são um lixo, entre outras razões, porque são narcísicas.

As pinturas de El Greco consomem seus personagens no fogo. Assim Kazantzaki vê a experiência mística: o místico é consumido pela chama de Deus. Nenhum corpo permanece igual diante do fogo.

Nenhuma alma permanece igual diante de Deus: ela vira chama como ele. Do caos à luz, "o método de Deus".

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