Luiz Felipe Pondé

Escritor e ensaísta, autor de "Notas sobre a Esperança e o Desespero" e “A Era do Niilismo”. É doutor em filosofia pela USP.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Luiz Felipe Pondé

True crime é vida real no Brasil, onde gente honesta só se ferra

O país só tem leis para quem não faz happy hour com os poderosos em Brasília

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

A expressão "true crime", conhecida de quem gosta de produções audiovisuais baseadas em crimes verdadeiros, ou documentários mesclados com narrativas ficcionais, pode descrever situações bem mais estranhas do que as ficções que passam nos streamings. E, por isso mesmo, podem parecer mais absurdas.

Título: “True crime”. A ilustração figurativa de Ricardo Cammarota foi executada em técnica manual com lápis crayon sobre papel branco, em acabamento esfumaçado/borrado.
Ricardo Cammarota/Folhapress

Vou narrar uma para você hoje. Nada de países europeus ou EUA, nem envolve assassinatos ou serial killers. Nenhum caráter espetacular, mas humilhantemente real e com cara de Brasil mesmo.

Imagine um empresário de médio porte, com um negócio que atende o que se chamaria no passado de "classe operária", na época do Lula 1 e 2, "classe C", hoje, apenas, classes menos favorecidas, mas que consegue ir às compras no final de semana na periferia de São Paulo.

Agora imagine que um dia normal de sábado, loja cheia de felicidade, mulheres alegres comprando o que podiam, maridos de cara feia, com aquela preguiça atávica que homens, normalmente, têm com lojas em geral, crianças correndo, vendedores pensando nas comissões, o empresário pensando que ia conseguir pagar salários, FGTS, férias, pagar os 150 boletos mensais —incluindo os enormes impostos—, e, claro, as propinas dos fiscais amigos. Um sábado feliz, enfim.

De repente, uma gangue mascarada invade a loja, fecha as portas, e começa o assalto. Homens gritando que iam matar todo mundo, estuprar as mulheres. Correm e põem uma arma na boca do empresário, ameaça diretamente sua secretaria, levantando sua saia com uma das suas metralhadoras.

"Infelizmente", no cofre não tinha quase nenhum dinheiro em espécie. Mas, para a sorte dos bandidos –aqueles mesmos que alguns inteligentinhos consideram "vítimas sociais"–, no cofre havia muitos talões de cheques virgens da PJ [pessoa jurídica]. Roubam todos. Roubam dinheiro e cartões de créditos dos clientes e funcionários –na época, celulares não eram ainda comuns. Quebram muitos móveis, aparelhos de TV, batem nalgumas pessoas, ameaçam de morte o empresário dizendo: "a gente sabe onde você mora, viu, seu milionário? Vamos pegar sua mulher e sua filha e dar uns tratos nelas". E vão embora. O sábado foi perdido.

Os mais jovens talvez não saibam o risco que era ter talões de cheques roubados, mas vou explicar. Os ladrões saíam comprando com os cheques, e muita gente não checava a "fonte" do cheque. Em sendo de PJ, o risco era maior ainda.

Nosso personagem "empresário", que de milionário não tinha nada, fez boletim de ocorrência como manda o figurino. Tudo certinho, mas, como reza a cartilha nacional, nessas terras de Lula, Bolsonaro e seus capangas, o cidadão comum nunca está protegido em situação alguma. Não há garantias, nem se você fizer a liturgia para o caso em questão. Pouco importa o que os poderosos vomitem, o Brasil só tem leis para quem não faz happy hour com os poderosos em Brasília. Para os amigos tudo, para os inimigos a lei.

Algum tempo depois, nosso empresário é intimado a comparecer diante da "justiça". E por quê?

Uma empresária de uma cidade do interior havia recebido um dos cheques roubados como pagamento de uma compra grande feita por um dos integrantes da gangue que roubara os talões no assalto descrito acima. Ela recorreu à "justiça" para que o empresário roubado fosse obrigado a pagar o cheque. E o que aconteceu? O juiz determinou que a vítima do assalto pagasse o cheque roubado. Você não acredita?

Muita gente no Brasil e na "justiça" gosta de fazer "justiça social" com o chapéu alheio. Pouco importaram os apelos da vítima do assalto, que era um absurdo ele ter que pagar um cheque que lhe fora roubado. O que ele ouviu foi que seria melhor para ele pagar aquele cheque do que se o processo seguisse adiante porque, nesse caso, sairia ainda mais caro para ele, que ainda perderia ao final com certeza.

Moral da história: o empresário foi assaltado, teve um enorme prejuízo, teve que pagar o advogado e ainda pagar o cheque que o ladrão passou na loja da empresária que não se deu ao trabalho de checar o cheque de uma PJ.

Último ato: fechou a loja, demitiu todo mundo e foi embora do país. No Brasil, gente honesta só se ferra.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.