Luiz Felipe Pondé

Escritor e ensaísta, autor de "Notas sobre a Esperança e o Desespero" e “A Era do Niilismo”. É doutor em filosofia pela USP.

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Luiz Felipe Pondé

Há quem não possa se dar ao luxo de repudiar as guerras contemporâneas

É um argumento que vendeu bem, fez sucesso com hippies, mas está descolado da realidade de quem vive o conflito

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O que pensar de frases como a que diz "sou contra guerras"? Claro, de cara nos lembramos do "paz e amor" da contracultura. Mas nesse caso vimos o nascimento da cultura do jovem como paradigma do mundo —um absurdo em si porque o jovem não sabe nada de nada porque acabou de chegar ao pedaço, mas a ideia vendeu bem— e, também, os hippies devem ter pegado muita mulher com esse papinho.

Fora isso, papo furado. Mas investiguemos mais a fundo a frase. Temo que ela esconda uma superioridade moral assumida da parte de quem a diz. Temos de lembrar, também, que a frase pressupõe um princípio moral de ação: como sou contra guerras, nunca as farei ou as aceitarei. Aqui aparece um primeiro problema semântico —ou seja, de significado.

A ilustração figurativa de Ricardo Cammarota foi executada em técnica manual, com pincel e tinta nanquim sobre papel branco e, posteriormente, colonizada digitalmente nas cores: azul céu, rosa e amarelo.  A imagem, na horizontal, proporção 17,5cm x 9,5cm, apresenta à esquerda um cérebro cor rosa, estilizado, com contornos com linhas pretas e, à direita, uma imagem, semelhante ao formato e tamanho do cérebro ao lado, em cor amarelo, porém, a imagem é de uma explosão estilizada de uma bomba atômica.
Ilustração de Ricardo Cammarota para coluna de Luiz Felipe Pondé - 19 de fevereiro de 2024 - Folhapress

Fazer uma guerra, no sentido de participar dela como soldado, como população, como agente com poder de decisão, nada tem a ver com aceitá-la como ideia. Na verdade, só diz essa frase quem nunca foi obrigado a participar de uma guerra.

Ou porque, distante da guerra, pessoas "contra guerras" ganham dinheiro falando que são contra guerras. Voltemos a afirmação anterior, segundo a qual só diz "sou contra guerras" quem nunca teve de participar de fato de uma guerra —citar Gandhi não vale, ele é clichê puro na conversa.

Por isso, perceba você, caro leitor, que quem diz frases como essas normalmente está tomando vinho em um restaurante descolado, ou em casa de amigos, ou em situações em que dizê-las implica bom marketing profissional ou pessoal.

Enfim, todas as situações descritas aqui implicam ambientes seguros e controlados. Grande parte dos erros cometidos por quem se posiciona a respeito de guerras vem do fato de que essas pessoas não estão expostas a guerras reais e a suas implicações próximas ou distantes.

O fato é que ninguém, fora psicopatas ou a indústria bélica e seu lobby, é "a favor de guerras". Portanto, ser contra guerras é uma frase que não tem um oposto com significado simétrico. Ela pressupõe que todo mundo que não afirma ser contra a guerra é a favor delas por escolha ou porque, no fundo, são psicopatas ou ganham dinheiro com elas, o que, empiricamente, seria um absurdo estatístico.

A verdade é que a guerra nada mais é do que a continuação da geopolítica por outros meios. Você talvez reconheça a semelhança com a famosa frase do alemão Carl von Clausewitz, que diz: "A guerra nada mais é do que a continuação da política por outros meios".

O princípio aqui é que a guerra não é uma entidade moral autônoma. Mesmo as escolhas que são feitas pelas partes em contenda são feitas sob pressão de muitos interesses e conflitos que sempre ultrapassam a óbvia segurança de luxo de quem dá o veredito "sou contra guerras" tomando vinho.

Só para citar exemplos do momento, quem acha que russos, ucranianos, israelenses e palestinos são "a favor de guerras"? Fora psicopatas, como disse aqui, as pessoas vão para a guerra —com uma enorme chance de não voltarem— não porque são a favor das guerras, mas porque naquele contexto específico não há escolha. Nunca devemos confundir motivações com escolhas livres.

Aliás, se fôssemos entrar aqui em uma discussão filosófica sobre a livre escolha —ou livre arbítrio, termo famoso na filosofia e na teologia—, não chegaríamos a lugar nenhum.

Um outro fato que, penso, leva pessoas a dizer frases como "sou contra guerras" e ir dormir acreditando no que disseram é que guerras têm uma característica insuportável para épocas como a nossa, em que passamos muito tempo falando sobre o que não entendemos nas redes ou comprando coisas inúteis. Nosso mundo é um saco de bobagens atado a um bando de corações frívolos.

Uma enorme falação como modo de agir. Pura masturbação, em resumo. A guerra em si é uma realidade que não comporta muito espaço para especulações ou abstrações quando você está no meio dela.

Ou você mata ou você morre, e existem ainda as várias derivações dessa condição primal. A guerra silencia as vozes e dá lugar ao ruído da coragem, do medo e da morte. Ser contra guerras é um luxo que nem todos nós temos à disposição.

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