Roteirista e escritora, é criadora da série 'As Seguidoras' e trabalha com desenvolvimento de projetos audiovisuais
O abacaxi de bandeja
Amo abacaxi, odeio a casca; é o mesmo que desejar um homem de camisa polo
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Estou empacada no corredor do hortifrúti, atrapalhando a plena circulação dos carrinhos. A profusão de frutas descascadas, cortadas, higienizadas e embaladas em bandejas de isopor me envenena mais do que os agrotóxicos.
Nada resume melhor minha geração do que os gominhos de tangerina orgânica enfileirados sob o plástico filme. Isso, e aquela pinça descartável para comer pipoca. Queremos tudo de mão beijada —e depois esterilizamos a mão com álcool gel.
A natureza se dá ao trabalho de inventar a melhor embalagem que existe. Uma casca resistente, abre-fácil, cheirosa e 100% sustentável. Daí chega outra invenção da natureza, o homem —não dá para ser genial o tempo todo—, e inventa as bandejas de poliestireno expandido, o famigerado isopor, pouquíssimo reciclado no Brasil, que leva centenas de anos para se decompor.
E o que essa millennial consciente faz a respeito? A mesma coisa que venho fazendo na seção de frutas há meia hora: nada. Estou paralisada pelo paradoxo do abacaxi.
Amo abacaxi, odeio a casca do abacaxi. É uma sensação estranha, tipo desejar um homem de camisa polo. Como lidar com essa casca dinossáurica sem desperdiçar um terço da fruta ou perder um dedo? Não é à toa que a palavra abacaxi também é sinônimo de problema.
É quando uma senhora, provavelmente baby boomer, me pede licença. Não consigo evitar e olho suas compras de soslaio. Observar o carrinho dos outros é uma janela escancarada para suas entranhas. Julgar os congelados alheios faz bem para a alma. Invejar os orgânicos alheios faz bem para a saúde. Me identifico com seus caquis, tão frágeis, protegidos por uma armadura de isopor.
Pego meu abacaxi pré-fatiado envergonhada, olhando para os lados, como quem agarra um pacote de Miojo sabor frango assado com limão. Ainda bem que minha ecobag não é transparente. Minha vontade era vesti-la na cabeça. Nem o brilho do meu canudo de inox consegue ofuscar a verdade.
Na fila do caixa, penso no preço da minha pressa, da minha preguiça. É esse o futuro que quero para os meus filhos? Que filhos? E que futuro? Dizem que abacaxi é bom para a digestão. Difícil mesmo é digerir a culpa que vem de bandeja.
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