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Roteirista e escritora, é criadora da série 'As Seguidoras' e trabalha com desenvolvimento de projetos audiovisuais

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A verdade é que eu estava odiando o espetáculo

A fantasia de ser engolida pelo assento foi minha saída de emergência

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Meu assento no teatro se dobra, subitamente, e me engole, como um jacaré faminto. Desapareço. As câmeras de segurança do teatro registraram a minha entrada, mas nunca a minha saída do prédio. As imagens são vistas pela polícia. Cabelos úmidos e um trote apressado até a bilheteria —o vídeo não tem som, mas o segundo sinal zunia. No guichê, recebo meus dois ingressos de cortesia e devolvo um deles ao atendente.

O frente sala gesticula, apontando a direção do meu assento. A investigadora pausa o vídeo quando minha expressão se retorce. "O que ela pode ter visto? Quem?", se pergunta a policial, certa de que a resposta é crucial para solucionar o mistério. O que ela não sabe é que eu só estava me dando conta de que meu assento era no meio da segunda fileira. Um lugar privilegiado, geralmente reservado a convidados, que considero muito exposto.

A polícia interroga uma senhora que se sentou ao meu lado, não exatamente ao meu lado, porque havia uma cadeira vazia entre nós —o convite que devolvi por falta de companhia. O depoimento é inútil para a investigação, mas sua transcrição poderia ser publicada em um caderno de cultura. A testemunha adorou a peça, tanto que nem percebeu minha presença e minha falta. Pena que não posso dizer o mesmo. Lembro bem de sua risada pérfida, que me atraiu para as profundezas de mim mesma. Como é possível que estivéssemos assistindo a duas peças diferentes?

Ilustração de Silvis para coluna de Manuela Cantuária de 20 de maio de 2024 - Silvis/Folhapress

A verdade é que eu estava odiando o espetáculo. Não vou entrar em detalhes. Teatro, para mim, é como pizza: mesmo quando é ruim, é bom. Eu não estava contando os minutos para o cair das cortinas, pelo contrário. A chegada desse momento me assombrava, porque conheço a atriz principal e teria de parabenizá-la ao final daquela tragédia.

A apresentação se desenrolava na minha frente como a corrente de uma âncora que afunda vertiginosamente no mar. Enquanto isso, um ensaio acontecia dentro da minha cabeça. O que dizer, sem ser falsa demais ou sincera demais. Como dizer, sem trair a mim mesma, sem trair a uma amiga. Não fui ao teatro para atuar, mas logo teria de entrar em cena. Meu público não era fácil: uma atriz exímia em seu ofício e proporcionalmente insegura.

A fantasia de ser engolida pelo assento foi minha saída de emergência. Os aplausos da plateia me receberam de volta, depois da breve eternidade do meu desaparecimento.

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