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Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

Filme em que tudo (e nada) funciona

Museu retrata com brilho e sutileza a tragicomédia da cultura latino-americana

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Se você acha que as coisas não funcionam no Brasil, pode ser instrutivo conhecer um pouco mais do México.

Em matéria de incompetência geral, a aventura de Juan (Gael García Bernal) e Wilson (Leonardo Ortizgris), dois jovens suburbanos da Cidade do México, supera bastante a média brasileira.

Baseada em fatos reais, a história de “Museu”, filme de Alonso Ruizpalacios em cartaz, transcorre em 1985 —uma época sem celulares nem câmeras de segurança.

Os dois rapazes, sem saber muito por quê, resolvem roubar o Museu de Antropologia do México. As relíquias maias de Palenque estão, é claro, atrás de vitrines razoavelmente seguras, e há guardas fazendo a ronda.

Juan, que é o cérebro da dupla, sabe violar a proteção de vidro sem fazer barulho. Uma quantidade absurda de imprevistos e acidentes, contudo, acompanha a empreitada.

Não posso contar mais do que já contei, mas adianto que as autoridades policiais conseguem ser tão ou mais abobadas que os dois amigos.

Poderia ser uma comédia, mas “Museu” vai além disso. Muito sofrimento pessoal e, acima de tudo, o drama de toda a cultura latino-americana se entrelaçam, como fios de chumbo, na leveza da trama.

Wilson, o ajudante, é um caso perdido do ponto de vista intelectual. Juan, filho de médico, alterna momentos de vivacidade rebelde (resultado de um antiamericanismo mal digerido) com episódios de delírio e de ausência provocados pelo excesso de droga.

Sua família parece bastante com qualquer outra da classe média alta brasileira. O Natal se comemora entre conversas sobre viagens à Europa, distribuição de videogames às crianças, picuinhas de primos e cunhados, e o ocasional emprego de palavras em inglês.

Juan reclama quando alguém fala em servir o “fruitcake”. Diga bolo de frutas, pudim de frutas ou qualquer outra coisa, resmunga o rapaz, sem tirar os olhos da TV, a que se adaptou um console de Atari.

Ele tinha se sentado no sofá para impor ordem às crianças, que brigavam sobre quem estaria na vez de jogar. Determina que se siga o combinado previamente —mas logo em seguida aceita que se desrespeite a regra.

Também é contra a tradição de alguém se disfarçar de Papai Noel. Transfere, nesses incidentes cotidianos, a revolta contra a ordem paterna —imposta de fora, europeia ou americana, se quisermos.

O velho médico doutor Nuñez (Alfredo Castro Gómez) desespera do filho, que escolheu viver na periferia e já revela as consequências físicas de sua dependência.

É inversa a relação de seu amigo, Wilson, com o próprio pai. Não quer largar dele, que está à beira da morte. Recusa-se a participar de qualquer estripulia, com medo de que o pior aconteça.

O apego extremo e a contestação desordenada não deixam, contudo, de fazer parte de um mesmo complexo. Um pai doente é tão incapaz de fazer valer suas ordens quanto um pai  que já se desalentou de cumprir o seu papel.

Tudo poderia ser apenas um drama familiar, só que “Museu” não insiste na psicologia da coisa.

O plano, afinal de contas, é roubar um tesouro maia. Estamos às voltas com outro tipo de legado, com uma diferente forma de ancestralidade.

Ao lado do pai real, inefetivo, existe outro: o pai imaginário, o imperador maia, traído e saqueado por várias 
levas de conquistadores.

Juan e Wilson vão procurar um conhecido, guia turístico num sítio arqueológico. A tela fica escura, enquanto se ouve uma conversa incompreensível. São os descendentes dos índios, falando em maia.

Não há muita esperança para eles, tampouco. Podem orgulhar-se de seus antepassados, mas a sobrevivência atual impõe formas humilhantes de conciliação com o estrangeiro.

Um britânico aparece na história, aparentemente amistoso e disposto a dar uma ajuda aos aventureiros. Outro pai?

As dificuldades não cessam de surgir. “Este filme”, avisa o letreiro inicial, “é uma réplica de acontecimentos originais”. De alguma forma, tudo se passa como se o próprio material autêntico fosse falsificado; como se tudo o que é real perdesse o valor.

Talvez a coisa valha mais para o México do que para o Brasil, onde o passado pré-colombiano não teve a mesma monumentalidade. Mas também é nossa a experiência latino-americana com o falso, com o disfuncional, com o que “não é para valer”. “Museu” é um filme de verdade.

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