Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

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Marcelo Coelho

O curioso caso da senhorita Brown

Não há certeza sobre como seria um governo Bolsonaro, mas dá para ter uma ideia

Ilustração de André Stefanini para Marcelo Coelho de 24.out.2018.
André Stefanini

A torcida pode ser grande, mas uma ação imediata do Judiciário no caso do caixa 2 de Bolsonaro teria graves consequências políticas.

Que se abram as investigações, nada mais natural. Ir além disso —querendo desde já a impugnação da chapa— seria um temeridade.

Afinal, o candidato do PSL vem preparando há bastante tempo —no mínimo desde sua primeira entrevista no hospital Albert Einstein— a versão de que já está eleito e que qualquer outro resultado será uma fraude.

É quase um "chamado às armas" e um estímulo para todo tipo de fábula golpista.

Não sabemos se tal reação contaria com grande apoio —mas o discurso radicalizante (contido com muito esforço na atual campanha) ganharia pleno curso.

Vencendo Bolsonaro, o melhor seria esperar. O processo de impugnação de uma chapa presidencial no TSE demora um ou dois anos.

Até lá, é possível que o país recobre a lucidez, saia do seu surto fascistoide e venha a se confrontar com uma situação política e econômica ainda pior do que a presente.

Poder desenfreado das milícias, com umas dez Marielles assassinadas; um virtual genocídio de populações indígenas (naturalmente se discutirá se "é genocídio" ou "não é"); banho de sangue nas periferias; índices de desmatamento jamais vistos —já conto isso como certo.

Ah, mas a reforma da Previdência... O estímulo aos investimentos... A controle do deficit público...

Não tenho tanta confiança nos poderes mágicos de um técnico do mercado financeiro como Paulo Guedes.

Talvez ele esteja sendo utilizado apenas como fachada liberal para um candidato associado a reivindicações corporativistas e rodeado de militares pouco adeptos da privatização.

Fanáticos do livre mercado, do tiroteio, do fundamentalismo religioso e da ditadura militar têm um ponto em comum —enxergam mal a realidade.

Não possuem flexibilidade para se adaptar às circunstâncias. Só sobrevivem batendo na mesma tecla, de preferência com um martelo pesado o bastante para destruir o próprio piano.

Uma crise econômica internacional, um agravamento interno do desemprego ou da inflação, um tropeço no Congresso ou um escândalo de corrupção podem desequilibrar a autoconfiança de Bolsonaro e abalar sua popularidade.

Ah, mas ele é um rapaz inteligente, afirma um articulista na página 3 deste jornal. Tanto assim que passou no difícil concurso de admissão para a Academia Militar das Agulhas Negras!

É um exame para quem concluiu o ensino médio, com matéria equivalente ao de um vestibular (incluindo conceitos perigosos como feudalismo e revolução industrial).

Lembro que o ex-presidente Figueiredo, cujo intelecto não era fulgurante, destacou-se em exames militares bem mais difíceis; na época, registrava-se que ele tinha sido "tríplice coroado" em não sei quais concursos de ingresso ao alto oficialato.

O fato é que os bolsonaristas acreditam em qualquer coisa. Minimizam o risco de ter na Presidência um verdadeiro alucinado, sem nenhum preparo, sem ideia do que fazer com a economia e sem convicções democráticas.

Bem, diz outro articulista da Folha, pode ser que ele destrua a democracia e que seu governo seja um desastre. Pode ser também que não aconteça nada disso. O futuro, sentencia o articulista, é incerto. Por definição, não sabemos o que vai acontecer.

O raciocínio pode ser comparado ao de uma jovem e talentosa americana —chamemo-la srta. Brown— que faz seus preparativos para o casamento.

Recém-formada num curso à distância em neurofilosofia pela Universidade do Arizona, a jovem conhece um rapaz pela internet. Peter é simpático, másculo, bem-apessoado e honesto.

A família se preocupa. "Viu os posts que ele publica?" Peter admira Hitler (a srta. Brown é afrodescendente). "Além disso, já quebrou a cara de cinco namoradas, tem dívidas de jogo, bebe como um condenado e sofreu três condenações judiciais."

"Quem? O Peter?" A srta. Brown suspira. "Isso não prova nada. É o passado dele. O futuro é desconhecido. Ele pode perfeitamente ser um bom marido."

A família acha que a srta. Brown está apaixonada e não vê a realidade. Como boa neurofilósofa, ela contesta essa ideia. "Não é o meu coração. Está tudo no meu cérebro."

Com um cérebro desses, não sei se a srta. Brown seria aprovada na Academia das Agulhas Negras.

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