Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

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Marcelo Coelho

A esquerda terá de começar do zero

Resistência à ameaça fascista exige atenção cotidiana e novo empenho intelectual

Ilustração de André Stefanini para Marcelo Coelho de 31.out.2018.
André Stefanini

Logo depois de saírem os resultados da eleição, recebi pelo WhatsApp a imagem de um cartaz que achei bonito e importante neste momento.

O desenho, de características bem caseiras, traz duas mãos unidas em frente a uma rosa cheia de espinhos. Diz apenas: "Ninguém solta a mão de ninguém".

Justamente, era esse o meu primeiro medo após a vitória de Bolsonaro: o de que casais homossexuais deixassem de andar de mãos dadas pela rua.

A ameaça do fascismo, certamente, incide mais diretamente sobre os gays, os transexuais, os índios, os jovens negros da periferia, a população de rua, os artistas de teatro e suas adjacências.

A caminho da minha zona de votação, numa tarde afinal calmíssima, tive a alegria de ver ("ainda", pensei) duas mulheres de mãos dadas. Mais uns quarteirões, dois homens faziam o mesmo.

Começa, portanto, uma resistência —simples, silenciosa e tranquila— frente ao que a eleição de Bolsonaro significa de mais raivoso, de mais injusto, de mais estúpido.

Certamente, os quase 60 milhões de brasileiros que votaram na extrema direita não são todos adeptos da tortura, do assassinato de índios e do espancamento de homossexuais.

A grande maioria dos alemães, em 1933, era feita de pessoas também decentes, inofensivas e bem-intencionadas.

O problema é que, sem apoiar maiores violências contra os judeus, no fundo não se importavam tanto assim com o que poderia acontecer. "Não, não acredito que Hitler chegue a tal ponto..." "Não é que eu seja antissemita, mas também eles acham que mandam em tudo..." "É só discurso eleitoral, estamos no século 20 e não na Idade Média..."

Seja dito que, ao contrário de Hitler, o presidente eleito fez um discurso conciliador, sem dar murros na mesa e sem proclamar o início de uma era "revolucionária".

Durante a campanha, entretanto, não faltaram absurdos de sua parte ou de seus aliados e familiares. Provavelmente está em curso um "morde e assopra", por meio do qual o bolsonarismo testa seus limites.

Cabe à resistência democrática demarcar também o espaço inviolável dos direitos humanos e das liberdades individuais.

Domingo passado, na avenida Paulista, alguns energúmenos jogaram pedras na direção de quem comemorava —pacificamente— a vitória de Bolsonaro.

É dar pretexto a toda forma de repressão, é justificar todas as acusações da direita, é corresponder ao lamentável figurino mais de uma vez desenhado por Bolsonaro, que não se mostrava pronto a aceitar como legítimo o resultado eventualmente desfavorável das eleições.

A resistência terá de fazer-se de outro modo e a esquerda tem imensas lições a aprender.

Em primeiro lugar, desconsiderou a importância do debate ideológico. Enquanto um militante como Arthur do Val questionava sozinho os manifestantes do PT, do PSOL e companhia no Mamãe, Falei, seu canal do YouTube, ninguém, que eu saiba, importou-se em contestá-lo.

Onde está o Kim Kataguiri da esquerda? Até por uma questão cronológica, grande parte da juventude nasceu e cresceu sob o predomínio de governos petistas, identificando sem dúvida todos os problemas seculares do país a Lula, Dilma e José Dirceu.

Enquanto a Record e outros canais de televisão faziam a lavagem cerebral dos programas evangélicos e do noticiário criminal da tarde, a esquerda continuou vendo na Rede Globo seu maior inimigo.

O problema da violência urbana, reconhecidamente complexo, não conheceu resposta inteligente e "vendável" do ponto de vista eleitoral. Sobrou, previsivelmente, o elogio do bangue-bangue representado por Bolsonaro.

Simetricamente, a maioria petista se empenhou em combater um dos raros avanços políticos dos últimos anos que contava com real popularidade —a Operação Lava Jato. Exageros e erros à parte, pela primeira vez figuras como Eduardo Cunha e Geddel Vieira Lima foram levados à prisão.

A grande energia da militância isolou-se, entretanto, numa causa ingrata e personalista: a de insistir na inocência de Lula.

Paga-se o preço, agora, de uma política de alianças insustentável, alimentada pela aberta corrupção, pela cegueira e pela arrogância. Não bastaria uma "autocrítica" ou uma nova "carta aos brasileiros" por parte de Haddad. Ele só chegou ao segundo turno graças ao lulismo --o mesmo fator que levou à sua derrota.

É hora de começar do zero.

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