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Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

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Guerra contra canudinhos de plástico

A campanha não traz incômodos, mas o 'politicamente correto' quer mais que isso

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Em matéria de ecologia, estou pronto a apoiar qualquer iniciativa —em especial as que não me custam grande sacrifício. A guerra aos canudinhos de plástico, por exemplo, me parece justa.

Ainda mais depois de eu ter visto aquela foto horrível de uma tartaruga marinha, encontrada morta com um canudinho enfiado na narina. O pobre animal passou por dias ou semanas de tortura, sem ter condição nem mesmo de expressar seu desespero.

E nosso prazer com canudinhos de plástico, vamos admitir, não é dos mais vitais. Faço uma exceção para os milk-shakes: aí nenhuma colher resolve, e será necessário recorrer a canudos de metal laváveis.
Mas o canudinho no copo é obviamente supérfluo. O na lata de refrigerante, ainda que bem-vindo, é sobretudo questão cultural. Pois ninguém toma cerveja em lata com canudinho.

Reconheço que os canudinhos de papel, que começam a aparecer, são péssimos. Viram uma gosma muito antes de eu terminar a bebida.

Seja como for, a abolição dos canudinhos de plástico é mais uma causa politicamente correta que não vejo problema em apoiar.

De modo geral, o plástico nunca foi uma das coisas mais simpáticas —ou é pegajoso em excesso ou duro demais. Quase todas as cores, no plástico, adquirem uma aparência barata e infantil.

No mundo dos brinquedos, a borracha é viva, sabe resistir, pular, produzir grasnidos e assobios. Mesmo seu cheiro, sem ser bom, é lúdico. Já o plástico é morto, passivo, doentio. Não se decompõe na natureza, talvez porque possua algo de cadavérico em sua própria origem.

Alguém escreveu, para uma revista americana, o diário de sua experiência ao abolir completamente o plástico da vida.

Nos Estados Unidos, isso começa a se tornar menos irreal do que parece. Algumas cidades baniram completamente os sacos de plástico —especialmente depois de uma revelação vinda da China.

Muito do plástico que se enviava até lá para ser reciclado vinha tão cheio de restos de comida e outras porcarias que não servia para as usinas de processamento. Pesquisadores americanos avisam: só deu para reciclar 9% do plástico produzido em 2017.

Importante engajar-se, assim, na vida sem plástico. A autora do artigo, Janette Nanos, estava dando uma bola dentro ao chamar a atenção para o problema.

Mas é nesse momento que as coisas se complicam. O politicamente correto, nos Estados Unidos, não tem limites.

Uma semana depois de publicado o artigo, apareceu um leitor levantando duas dificuldades na empreitada ecológica de Janette.

Primeira. Ninguém ignora, diz o (a) autor (a) da carta, a violência que há por trás da discriminação do lixo.
Discriminação do lixo? Como assim?

Diz a carta que nos bairros pobres, latinos ou negros, o lixo não é tão “certinho”. Há mais plástico, mais coisa malcheirosa e menos cuidado com a reciclagem. Assim, quando o ecologista branco faz tudo conforme o manual, no fundo está reafirmando —basta ver o lixo dele— seus privilégios de classe e de raça!

Pensei que fosse alguma brincadeira, alguma ironia do (da) missivista. Mas a carta continuava.

Muito bonito abolir os canudinhos de plástico, dizia ele (ela). Mas isso também discrimina outra parte da população.

As pessoas com dificuldades de movimento, tetraplégicas ou sofrendo de Parkinson precisam de canudinhos. 

Vamos agora lhes impor o desconforto do canudinho de papel? Ou, pior, os canudos de metal indobrável?
Não era gozação. Provavelmente seria o caso de criar uma lei autorizando a essas minorias o uso dos canudinhos de plástico.

Imagino que a carta seja resultado, não direi do espírito de porco, mas de uma espécie de vocação do politicamente correto para o dissenso.

A psicologia da coisa talvez esteja, sem dúvida, no desejo de criar dificuldades. E no impulso de defender alguma voz minoritária.

O processo vai longe, porque toda minoria terá sempre uma minoria dentro dela. 

Talvez existam tartarugas marinhas cocainômanas.

Na Inglaterra, o termo “retardado” (“retarded”) está na lista dos xingamentos a evitar. Advoga-se agora a mesma censura para “crazy” e “insane” (doido, louco). Seria discriminatório contra quem sofre de doenças mentais.

Como refutar esse argumento? Afinal, quem defende esse ponto de vista deve ser louco mesmo. Só pode 
ficar ofendido, portanto.

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