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Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

Programas sobre natureza de David Attenborough passam longe do tédio

Não há cena que não provoque exclamações de espanto nos documentários do naturalista

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Dizem que as horas e horas de computador na quarentena acabaram criando mais um problema colateral de saúde pública —aumentam os problemas de visão.

Talvez seja isso. O fato é que estou achando os seriados da Netflix e companhia cada vez mais difíceis de assistir. Não que sejam ruins, ao contrário.

O que me incomoda em “Peaky Blinders”, “Alias Grace” ou “The Eddy” é que a maior parte das cenas se passa numa escuridão total.

Como a qualidade das telas de TV melhorou muito, acho que os estúdios resolveram exagerar na falta de iluminação. Depois, esse gênero de seriados tem alguns pontos a provar.

Primeiro, a ideia de que o passado, em especial o século 19, foi uma época de pobreza e brutalidade extremas. Adeus, histórias primaveris de Jane Austen, com todas as noivas casando com Hugh Grant.

Surgem as empregadas domésticas trabalhando 18 horas por dia, levadas para prisões e asilos de pesadelo (“Alias Grace”). Ou as vielas fermentando de betume, lama e peixe podre de Birmingham: lá, em bares da cor de um caixão de defunto, clientes com cara de taturana urinam sobre a serragem espalhada à frente do balcão —é o caso de “Peaky Blinders”.

A escuridão serve para o clima de ameaça que é o forte dessas histórias de suspense e de vingança. Também ajuda para ao mesmo tempo esconder —e revelar de repente— os rostos desfigurados a faca, os crânios amassados, as operações cirúrgicas sem anestesia.

Depois de umas três temporadas, tendo a me cansar de qualquer série, por melhor que seja. Mas o melhor de “Peaky Blinders” está na quarta temporada, quando os gângsteres ingleses enfrentam a máfia americana.

Seja como for, se for para recomendar alguma coisa na Netflix, minha ênfase vai em outra direção.

Nunca fui fã de documentários de bichos. O que esperar de uma zebra ou de um elefante? Mesmo quando criança, eu achava o zoológico um tédio.

Mas “Nosso Planeta”, do veterano David Attenborough, muda o jogo. A tecnologia contemporânea dispõe de drones, microcâmeras, e até robôs-pinguim com controle remoto.

Não há cena que não provoque exclamações de espanto. Uma borboleta húngara depende de uma flor específica para botar seus ovos. A larva então se joga da corola, com o objetivo de ser capturada pelas formigas do terreno. Sequestrada pelo formigueiro, ela emite sons que imitam os da rainha da comunidade —sendo assim alimentada e cuidada durante dois anos (!) até virar borboleta e reiniciar o ciclo.

Há o espetacular esforço de sedução nupcial de uma ave-do-paraíso da Nova Guiné; ela prepara o palco para uma dança esfuziante, hollywoodiana, em que até seus olhos mudam de cor.

Não há, propriamente, sentimentalismo nessa visão da natureza; violências não faltam. Mas tudo é humanizado.

É como se a larva ilusionista, o pássaro dançarino, o macaco industrioso, soubessem claramente o que estão fazendo.

Imagino um David Attenborough marciano filmando uma academia de ginástica: “Os seres humanos inventam aparelhos complicados, de modo a tornarem seu físico mais atraente para o sexo oposto…”.

Ou, indo mais ao ponto: “Para criar interesse na fêmea, o macho da espécie intumesce seu órgão sexual… [uma pausa] mas ela não parece interessada”.

Ficaríamos chocados se descrevessem nossos instintos básicos como um tipo de astúcia individual. Há uma distorção nisso, sem dúvida.

De todo modo, a mensagem de David Attenborough é simples. Todos esses espetáculos estão prestes a acabar, exceto nos poucos casos em que políticas pacientes de preservação foram empreendidas.

Não sei, é claro, como fazer para que a produção de alimentos não tenha algum tipo de impacto ambiental. Mas ninguém sai indiferente de um documentário como esses. Tudo é infinitamente precioso, além do que poderíamos imaginar em matéria de ajuste, de funcionamento, de beleza.

Penso então nos ministros de Bolsonaro, em especial Ricardo Salles.

Deve ser gente que nunca viu um documentário de natureza na vida. Experiências culturais de muita trivialidade, que fazem parte da cultura média de qualquer cidadão urbano, eles desconhecem.

De onde veio essa espécie tão bizarra, tão cega, tão teimosa e ignorante? Da selva não
digo. Volto aos “Peaky Blinders”, e penso nos covis de gângsteres, nos asilos, nas câmeras de tortura do século 19.

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