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Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

Descrição de chapéu Maratona

'The Crown' e 'Shtisel' têm mais semelhanças do que pode parecer

Um dos prazeres estéticos das séries é o de como cada personagem pode ser criativo diante do constrangimento

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Das séries que vi nos últimos anos, acho que duas realmente valem a pena: a inglesa “The Crown” e a israelense “Shtisel”. Fiquei pensando no que têm em comum.

As diferenças são óbvias. Em “The Crown”, é a história dos últimos 60 anos que aparece revisitada do ponto de vista da rainha Elizabeth 2ª.

Churchill, Kennedy, a independência dos países africanos, a chegada do homem à Lua, o surgimento do neoliberalismo com Margaret Thatcher, aparecem ao longo das três temporadas, e sempre há algo diferente a aprender em cada capítulo.

Publicada em 29 de junho de 2021 - André Stefanini

A história contemporânea, e as nada tranquilas circunstâncias do Oriente Médio, não têm nenhum papel no bairro ultra-ortodoxo de Jerusalém em que vivem o velho rabino Shulem Shtisel (Dov Glickman) e sua imprevisível família.

Tudo são brigas entre irmãos, casos de amor que não atam nem desatam, problemas de dinheiro e de trabalho, como numa telenovela qualquer. Com a diferença que “Shtisel”, em especial na terceira
temporada, alcança momentos de verdadeira obra de arte.

Não nego que as duas séries têm muito para desencorajar possíveis espectadores.

Conheço pessoas que se revoltam visceralmente contra a superfluidade e o privilégio em torno da família real inglesa —e “The Crown” pode funcionar como um forte argumento em favor do sistema republicano.

Não estou sozinho, ademais, ao considerar como totalmente irracionais e neuróticas as prescrições do fundamentalismo religioso. A torcida de quem assiste a “Shtisel” se volta rapidamente para o caçula da família, o galã Akiva (Michael Aloni), eternamente dividido entre a obediência à tradição e os apelos do mundo moderno.

Akiva tem um grande talento para a pintura —mas está destinado a ser rabino; a cada possível noiva que conhece, o mundo religioso ameaça cair em cima de sua cabeça.

Aqui as semelhanças entre “Shtisel” e “The Crown” começam a aparecer. No Palácio de Buckingham, assim como no modestíssimo apartamento do velho Shulem Shtisel, só se admitem casamentos arranjados; seguir o cerimonial é uma questão de vida ou morte; o dever, o tabu, a lei valem infinitamente mais do que a autonomia individual.

Isso pode ser irritante para muitos espectadores. Mas um dos prazeres estéticos dessas duas séries é o de ver de que modo cada personagem pode ser criativo diante dos constrangimentos da cultura, e o quanto cada ser humano continua a ser absurdamente diferente dos outros (e de si mesmo), mesmo quando tudo sufoca sua individualidade.

As irmãs Elizabeth e Margaret, que acompanhamos desde a pré-adolescência em “The Crown”, têm vocações distintas (e trocadas). A rivalidade entre elas, com vitórias que são derrotas, e vice-versa, para cada uma delas, é só um fiozinho dentro da extensa tapeçaria da série.

Cada primeiro-ministro que aparece no governo é o oposto do anterior; mas há tantas formas de uma pessoa ser oposta à outra, que o percurso das sucessões políticas traça um desenho errático, sobre o qual a rainha não tem nenhum controle.

Também o velho rabino Shtisel tem um irmão. Seria seu oposto, porque é vigarista e volúvel, nada impressionado pelo vozeirão e pela estabilidade moral do mais velho. Mas espere pelos capítulos seguintes.

O convencionalismo e a obediência às regras não impedem ninguém de fazer besteiras o tempo todo, de mentir mais do que gostaria, de abrir exceções e liberdades para si mesmo, de se arrepender e de ser perdoado.

E também nunca impediu ninguém de ser muito inteligente, mesmo quando forçado a exercer o papel de burro. Toneladas de burrice pesam sobre o Palácio de Buckingham e sobre o pequeno bairro
de Jerusalém; cada um de seus habitantes possui reservas consideráveis de esperteza.

Tanto assim que, no caso da rainha da Inglaterra, um autor policial inventou de transformá-la em detetive. “The Windsor Knot”, de S. J. Bennett, coloca Elizabeth 2ª diante de um assassinato dentro do palácio.

O mistério, em si, é moderadamente interessante. O divertido é que a rainha não pode fazer nenhuma investigação sozinha, não pode fazer perguntas fora de hora, e muito menos revelar sozinha quem matou quem.

Talvez seja esta a chave, afinal, do que há de artístico nisso tudo: é que a inteligência se esconde atrás das regras e das convenções, e subverte-as quando menos se espera.

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