Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

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'Nomadland' é cruzamento de 'La La Land' com neorrealismo italiano

O filme parece gritar que tudo está normal, com colegas de trabalho ótimos e chefe que não enche ou não existe

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Tenho prazer em recomendar “Nomadland”, de Chloé Zhao. É um filme feito com muita sensibilidade, que ajuda a entender um tipo de pobreza que atinge muitos nos Estados Unidos.

Mesmo tendo vencido o Oscar (melhor filme, diretora e atriz), foge de diversos cacoetes do cinema hollywoodiano.

Você sabe: aqueles filmes em que primeiro há uma ameaça, depois tudo parece que vai bem, os protagonistas encontram um abrigo sossegado, mas isso é só preparação para o momento em que tudo piora de novo e se torna realmente perigoso.

Mas o que caracteriza o filme é exatamente o esforço sistemático de fugir dessa fórmula.

Uma cena bem curta, mais ou menos no começo da trama, resume essa atitude da diretora (que é também a atitude da personagem principal). Trata-se de evitar o sentimentalismo, mas chegando bem perto dele.

A personagem de Frances McDormand está sozinha no mundo, e teve de abandonar a casa onde morava, depois de a principal fábrica de sua cidade ter fechado as portas.

Muita gente já tinha ido embora, para a casa de parentes ou sabe-se lá onde, deixando o que possuía para trás.

Ela faz as últimas compras no armazém, guarda os móveis e pertences num depósito. Um cachorro preto e magro a espera do lado de fora. “Ué, esse não é o cachorro de Fulano?”, pergunta ela ao dono da loja. “Pois é”, responde o homem. “Fulano não tinha como levar, deixou ele aí.”

A câmera se afasta, o cachorro dá uns ganidos, McDormand fica com pena, vai se afastando desajeitadamente, volta e… No filme típico, ela pegaria o cachorro, teríamos o começo de uma bela amizade e mais adiante o cachorro morreria.

desenho mostra silhueta de mulher andando em paisagem deserta, com montanhas, enquanto carrega luminária
Ilustração de André Stefanini para coluna de Marcelo Coelho, publicada na Folha em 8 de junho de 2021 - André Stefanini

“Nomadland” não faz isso, e a personagem também não: volta, faz um carinho muito reticente no cachorro —na verdade é um adeus— e segue o seu caminho.

Ela não poderia ficar com um cachorro dentro da van —essa é que é a realidade. Infelizmente, no meio daquela crise total, cada um terá de encontrar o seu caminho.

Esteticamente, a linha adotada por Chloé Zhao é a mais correta: seria muito ruim um filme que tentasse arrancar dos espectadores lágrimas e mais lágrimas de compaixão. Só que, para manter essa atitude, “Nomadland” acaba tendo de pagar um preço ideológico.

Por mais desesperada que seja a situação de uma mulher já de idade, num carro também velho, viajando a esmo pelos Estados Unidos, o filme inteiro se esforça em mostrar que, afinal, essa vida é uma escolha da personagem.

Em duas ocasiões, no mínimo, a trabalhadora errante poderia se fixar numa nova cidade e recomeçar a vida.

“Nomadland” estende o tempo em que a personagem pensa no que vai fazer, explicitando bem que ela “é livre” para escolher seus próximos passos.

É nisso que o filme, a meu ver, cede conscientemente a uma ideologia muito americana, e que só fez ganhar força com o neoliberalismo. A independência individual, diz “Nomadland”, vale mais do que casa e comida.

Ainda mais se a vida dentro de uma van, com todos os seus desconfortos, terminar não se mostrando tão insuportável assim.

O filme dá indicações disso o tempo todo, de modo irritante. (Cuidado, spoilers). Um amigo da personagem tem de ir ao hospital; precisa ser operado.

Seria sentimental se ele morresse. Evitando isso, o filme elimina qualquer problema de plano de saúde, acesso ao hospital e pagamento da cirurgia.

Para sobreviver, nossa heroína —que ensinava Shakespeare na escola— arranja um trabalho temporário na Amazon. Não há notícia de bullying, de superexploração do trabalho, de rotina acachapante.

O filme parece gritar: “Tudo normal”. Os colegas de trabalho são ótimos, o chefe não enche ou não existe e há boas amizades a fazer enquanto você monta caixas de papelão. Resulta que o filme
é um estranho cruzamento de “La La Land” com neorrealismo italiano.

Na estrada, nos acampamentos, só encontramos gente legal. Todos brancos, talvez alguns “native americans”. Mas nenhum trumpista, nenhum bêbado, nenhum drogado, nenhum fanático religioso, nenhum atirador maníaco.

Baseia-se no livro-reportagem de Jessica Bruder, coautora do roteiro, e tem várias personagens reais contando sua vida no filme, de modo muito bonito.

Nada mais certo do que mostrar que, vitimadas e pobres, aquelas pessoas mantêm sua dignidade, sua coragem, sua beleza como seres humanos. Mas “Nomadland” parece esquecer tudo o que, implacavelmente, age no sentido de destruir isso —com inegável êxito.

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