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Jornalista de ciência e ambiente, autor de “Psiconautas - Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira” (ed. Fósforo)

Descrição de chapéu Coronavírus

Chega de endeusar ciência ou morte

Retratação de estudo sobre cloroquina abala adoração da pesquisa na pandemia

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Truísmo: vamos todos morrer. Falsidade: morrer de Covid-19, antes da hora, é o destino de alguns. Ou vontade de um deus cruel, como prega o presidente Jair Bolsonaro, danação evitável só com o sacramento da hidroxicloroquina (HCQ).

Não há cura para o bolsonarismo, doença infantil do conservadorismo brasileiro. Já a crença na salvação pela Ciência com C maiúsculo, que se espalha com o coronavírus, precisa ser combatida com doses profiláticas do ceticismo que encorpa o caldo da ciência depurado dia a dia nas cozinhas chamadas de laboratórios.

Governadores enchem a boca para professar-se no partido da Ciência, quando em verdade estão maldizendo Bolsonaro. Menos mal que busquem orientação de especialistas, mas o manto de infalibilidade com que tentam cobrir o próprio rabo tem lá seus buracos.

Relaxar a quarentena em meio à epidemia galopante carrega pouco ou nada de científico. Resulta do cálculo eleitoral de políticos sob intensa pressão de empresários acuados pela falência e de pobres necessitados de ir às ruas para ganhar o pão.

A ciência não tem resposta para essa gente. Há que ouvir epidemiologistas nas decisões sobre distanciamento social, claro, mas sem esquecer que a disciplina tem mais a ver com o saber econômico do que com a biologia: seus modelos e projeções influenciam o próprio comportamento que almejam predizer.

Tampouco podem oferecer os pesquisadores, por ora, conclusões definitivas sobre benefícios ou malefícios da cloroquina no combate ao vírus Sars-CoV-2. O mais próximo disso era até poucos dias atrás famigerado estudo no periódico médico The Lancet de 22 de maio.

O artigo soou como bala de prata estatística contra o conhecido remédio antimalárico. Com base em amostra robusta de 96 mil pacientes, indicava não haver melhora no estado de doentes com coronavírus e ainda apontava efeitos adversos associados com maior mortalidade.

Multiplicaram-se manchetes pelo mundo. A Organização Mundial da Saúde (OMS) suspendeu o braço de testes clínicos globais com a HCQ como objeto. Adversários de Bolsonaro e Donald Trump, seus maiores propagandistas, inundaram mídias sociais com a má nova.

Mal durou duas semanas. Especialistas estranharam o tamanho da base de dados fornecida por empresa obscura e minúscula, Surgisphere. Pediram acesso a eles, negado sob pretexto de sigilo contratual com centenas de hospitais onde os casos teriam sido tratados. Na sexta-feira (5), a Lancet retratou-se da publicação.

Há quem aponte fortalecimento da imagem da ciência no episódio. Com efeito, seu mecanismo de autocontrole —o escrutínio crítico de dados e interpretações— funcionou rapidamente. O estrago foi extraordinário, contudo.

Falharam, primeiro, os coautores do médico Sapan Desai, executivo da Surgisphere, ao acolher suas informações pelo valor de face. Em seguida, os revisores especializados da Lancet, ao não questionar a procedência dos registros. Depois, os editores da revista, cobiçosos da óbvia repercussão que viria.

A derradeira falha veio de jornalistas. Vítimas do viés de confirmação que têm por dever prevenir, e confiando cegamente no prestígio da Lancet, trombetearam o estudo que parecia lançar pá de cal no medicamento incensado por Trump e Bolsonaro.

Prestamos, todos, enorme desserviço à ciência ao investi-la como arauto do Bem contra os soldados do obscurantismo, em realidade facilitando-lhes munição. A ciência, humana, já se corrigiu; eles, desnaturados, jamais se corrigirão por cultuar a morte.

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