Siga a folha

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

Bob Dylan vai da era de Aquário à do Anticristo, do Apocalipse ao Juízo Final

Cantor lançou há uma semana sua primeira canção inédita em oito anos, a fantástica 'Murder Most Foul'

Assinantes podem enviar 5 artigos por dia com acesso livre

ASSINE ou FAÇA LOGIN

Continue lendo com acesso ilimitado.
Aproveite esta oferta especial:

Oferta Exclusiva

6 meses por R$ 1,90/mês

SOMENTE ESSA SEMANA

ASSINE A FOLHA

Cancele quando quiser

Notícias no momento em que acontecem, newsletters exclusivas e mais de 200 colunas e blogs.
Apoie o jornalismo profissional.

Bob Dylan lançou há uma semana sua primeira canção inédita em oito anos, a fantástica “Murder Most Foul”. Ela canta a morte de um rei e a de um sonho —o de que seus filhos rebeldes libertassem o reino.
Mas o rei foi trucidado, a esterilidade tomou a terra e os insubordinados debandaram.

Da era de Aquário à do Anticristo, do Apocalipse ao Juízo Final —passos que a canção cita— impera a brutalidade do “murder most foul”, do “crime mais vil”, aquele cometido contra o soberano, o pai da pátria. Há algo de podre no reino dos Estados Unidos.

O título da canção é tirado de “Hamlet”, da cena em que o fantasma do rei conta que foi morto pelo irmão, Claudio. O traidor seduz e casa com a cunhada, a rainha Gertrude, para se apoderar da coroa. “A fé, a esperança e a caridade morreram”, diz Dylan. “Business is business.”

O reino desmorona na idade das trevas. Mas a canção popular se mantém de pé em meio às ruínas. “Murder Most Foul” é tecida com dezenas de alusões à música de massa americana. É uma colagem de canções que o Nobel de literatura amou e agora, aos 78 anos, relembra.

A homenagem aos grandes da música popular foi feita antes por Chico Buarque, no Brasil, e por Carla Bruni, na França. “Paratodos” saúda Noel, Caymmi, Vinicius, Nara, João Gilberto e outros. “Little French Song” louva Brel, Ferré, Piaf, Trenet, Aznavour, até Hallyday.

Ao fim de “Paratodos”, Chico Buarque se põe como um cantor imerso na tradição. “Vou na estrada há muitos anos, sou um artista brasileiro.” Bob Dylan inscreve a própria música que está cantando no rol da grande arte popular e pede, no último verso, que um DJ toque “Murder Most Foul”.

A canção segue viva, mas mudou. A música de Dylan não chega a ser canção nem é popular. Ela dura 17 minutos, não tem melodia, ritmo, refrão, não é cantarolável. Mesmo com forma frouxa, e fundamento na linguagem falada, a canção, enquanto gênero, está irreconhecível em “Murder”.

Porque agora é suplantada pela poesia, pelos versos derramados e tendentes à oralidade de determinada tradição americana —a que vai do Walt Whitman de “Folhas de Relva” ao Allen Ginsberg de “Uivo”.

Com verso livre e rimas emparelhadas, ela é um poema declamado, tendo ao fundo piano, cordas e percussão. Incisivas, suas imagens tornam prescindível a compreensão de todas as alusões lítero-musicais; Dylan não é Eliot, nem “Murder Must Foul” uma versão pop de “A Terra Devastada”.

A estratégia do compositor foi deixar que a letra se guiasse pela sonoridade das palavras. Mas a ênfase nas menções aos anos 1960 faz com que se forme um painel, uma montagem construtivista daquela época. Não só dela, contudo, porque a canção olha para trás e para hoje.

“Murder” mescla passado e presente, história e arte. Faz isso a partir da primeira sílaba, “Twas”, que no inglês seiscentista, o de Shakespeare, significa “it was” —“era” ou “foi”. E assim começa a narrativa do crime de lesa-majestade. “Foi um dia duro em Dallas, em novembro de 1963.”

O dia obscuro que viverá na infâmia, assim como o do ataque a Pearl Harbor na Segunda Grande Guerra, foi o da morte de Kennedy. Nele nasceu a matriz de todas as teorias conspiratórias, a incerteza quanto ao que de fato ocorreu em Dallas, quanto à própria verdade da narrativa histórica. Ou seja: “O dia que estouraram os miolos do rei/ Milhares olhavam e ninguém viu nada”.

Dylan remonta o dia em que atiraram no rei —“como num cão à luz do dia”— com palavras que se repetem desde então: “grassy knoll”; “Elm street”; “Lee Oswald”; “o filme de Zapruder”; “Dealey Plaza”; “Jack Ruby”; “a longa limusine negra”; “Lyndon Johnson”. São cacos do caos legado pela história.

A torrente de alusões torna a canção elusiva e enigmática, mas não ininteligível. Seu tom geral, de lamento e melancolia, é soldado pela linguagem shakespeariana (sobretudo do príncipe Hamlet e das
bruxas de “Macbeth”) e da Bíblia (do Livro de Isaías).

Não se sabe ao certo quando “Murder Most Foul” foi composta. Mas é evidente que é lançada agora devido ao vírus que empesteia o mundo, à atmosfera de final dos tempos proporcionada pela pandemia da Covid-19 (aliás, o Brasil tem um Anticristo só para si, o seu horripilante presidente).

A nova canção de Bob Dylan faz com que a música quase silencie —daí as referências a Harold Lloyd e Buster Keaton — porque dispõe da força da poesia. Ela lembra que a decadência e a crise do mundo não começaram agora. De que há muito há algo de podre no reino da mundialização.

Receba notícias da Folha

Cadastre-se e escolha quais newsletters gostaria de receber

Ativar newsletters

Relacionadas