Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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A sem-vergonhice agressiva do presidente propicia a união contra ele

A vergonha é uma tomada de consciência, um passo para a união; o Brasil não pode ser Bolsonaro

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Lá veio ele. De terno xexelento e gravata brega. Erguendo os polegares a troco de nada. Articulando aos trancos e barrancos sujeito, verbo e predicado. 

Arreganhando os dentes numa risada maníaca. Ostentando a papada e o pescoção obscenos para os celulares da claque.

Outra manhã no portão do Alvorada. O cenário foi calculado para ser morfético: o chiqueirinho insolente para jornalistas, a canhestra coreografia de jagunços simiescos, o alvoroço dos bajuladores. O Mito sai do palácio com o script pronto.

Tanto que na terça-feira, sem que nada lhe fosse perguntado, e recorrendo a um aspone, ladrou suas cachorradas contra a repórter Patrícia Campos Mello. Aí fez uma cara de espertalhão que ganhou o dia, afixou a metálica risada-cicatriz na fuça e se mandou. Só a sua corja achou graça.

Ilustração de cena que acontece em uma sala de estar. Um homem está cabisbaixo com o rosto apoiado nas duas mãos sentado em um sofá. Na frente dele, há uma tv que está transmitindo um pronunciamento de Jair Bolsonaro. Uma criança com um ursinho na mão está olhando para o homem sentado sem entender a situação.
Bruna Barros/Folhapress

Mesmo que as patadas do presidente e seus asseclas sejam reiteradas diariamente, houve dessa vez um incômodo inusitado. A infâmia não foi tida por corriqueira. Como definir o embaraço que se espalhou por parte da opinião pública?

Houve por certo enjoo, cansaço, gente que de novo perguntasse: de que bueiro saiu esse cara? Mas sentiu-se outra coisa, um dissabor fugidio que pegou fundo, constrangimento, humilhação, repulsa. Salvo engano houve vergonha.

A vergonha é um sentimento tão evidente que fica difícil defini-lo. Talvez seja um meio termo entre pudor e culpa, mas se alimenta de ambos. 

Ocorre no íntimo da pessoa, mas vem de fora, diz respeito a como os outros a enxergam. Dá-se a ver no rubor e no gesto de cobrir o rosto com as mãos.

No Gênesis, Adão e Eva comem o fruto proibido e, ao acordarem, sentem vergonha pela primeira vez. A consciência do que fizeram os perturba. Têm vergonha da nudez e se cobrem com folhas. Envergonhados, são expulsos do Paraíso.

Vergonha vem do latim “Verecundia”, cujo plural é sinônimo de órgãos sexuais. Na sua carta, Pero Vaz de Caminha joga com os dois sentidos, contrapondo as vergonhas das índias à sem-vergonhice dos lusos:
“Moças bem gentis, com cabelos muito pretos, compridos pelas costas, e suas vergonhas tão altas, tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as muito bem olharmos, não tínhamos nenhuma vergonha”.

A vergonha inexiste na infância. Crianças não se importam com a nudez, em urinar e defecar em público, em ter prazer com dejetos. A partir da puberdade, diz Freud, a vergonha é um dos mecanismos —como a timidez, o asco e o pudor— com os quais a cultura recalca a pulsão sexual dos indivíduos.

A vergonha dos brasileiros foi outra: a de ter um presidente sem noção. Que fala no Alvorada como num vestiário de caserna. Que se dirige a nós como se aos da sua laia. Que agride quem não é ignóbil como ele. Como reagir à torpeza cotidiana?

Carlo Ginzburg é um eminente historiador italiano. “O Queijo e os Vermes”, seu livro mais conhecido, inaugurou um gênero, o da micro-história. Tem 80 anos e a aura de um sábio.

Pois ele tem um ensaio contraintuitivo —inédito no Brasil e republicado há pouco na Inglaterra— no qual argumenta que a vergonha tem uma dimensão social e positiva. “O Vínculo da Vergonha” abre assim: “O país ao qual se pertence não é, como diz a retórica habitual, aquele que se ama, mas o do qual se tem vergonha.” Não que a vergonha seja uma escolha: “Ela desaba sobre nós, nos invade —nossos corpos, nossos sentimentos, nossos pensamentos— como uma doença repentina”.

Ginzburg busca suas raízes gregas. Para Aristóteles, ela é uma paixão, e não uma virtude. Em Homero, é um grito de guerra que atemoriza o inimigo: “Aidos!”, cujo sentido ecoa na expressão “Tenha vergonha na cara!”.

O decisivo, diz ele, é a dimensão coletiva da vergonha. A desonra que ela provoca serve de mola para vencê-la. 

Ela é uma reação ao perigo, um vínculo que congrega.

Daí que, na “Ilíada”, Nestor exorte seus soldados a ter “vergonha, a pensar nos filhos e esposas, nas posses e pais, vivos ou mortos: tenham coragem e não fujam da luta”. A vergonha é uma tomada de consciência, um passo para a união. O Brasil não pode ser Bolsonaro.

Foi o que ocorreu com o leitor Danilo Tucciarelli na carta que a Folha publicou. Ele pediu desculpas a Patrícia Campos Mello por ter votado em Bolsonaro, mas descobriu que o presidente é “um sujeito sujo e covarde”.

Conclui sua carta assim: “Tenho mãe, esposa, irmãs e, em breve, terei uma filha. E a última coisa que desejaria que acontecesse a elas é o que vem acontecendo com a jornalista.” A vergonha homérica está aí.

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