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Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

Em 'De Lua', Ná Ozzetti e Luiz Tatit buscam o consolo do canto que encanta

Eles retomam agora a parceria em CD que traz lúcidos e novos lances dos dois

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Ná Ozzetti e Luiz Tatit tiveram a boa ideia de compor uma epopeia da Pauliceia. A estreia foi no Sesc Pompeia, colmeia para onde volta e meia sua plateia volta. Ainda bem que a melopeia está também em "De Lua", um álbum com dez canções dos dois, a metade inéditas.

O disco abre alas com "Boa Ideia", canção que é uma odisseia de rimas nada plebeias. Com melodia de Ná e letra de Tatit, ela fala da São Paulo que, de tão engarrafada, empacou de vez. Mas, loucos para se locomover, pouco a pouco os paulistanos vão a Pompeia. Ali, um clamor começa pelos cantos, contamina todos e vira coro municipal.

O canto comunitário livra a cidade da paralisia e ela chora de alegria porque agora é livre. Mas aonde vai São Paulo? Pouco importa. O que conta é a lira heroica dos que destravam as ruas atravancadas, compõem a canção que as liberta e celebram a utopia do convívio coletivo harmônico.

Contada assim, "Boa Ideia" perde a graça, vira assunto, análise. Fica faltando o macio encaixe de melodia e letra, música e fala, som e sentido. Fica faltando o crucial, a canção. Sem canto não há encanto, nem a congregação sob a batuta de um menestrel que conclama: ouvidos, uni-vos!

Tatit e Ná são produto do tempo em que havia na televisão mais canções do que novelas: Jovem Guarda, festivais vários, O Fino da Bossa e Divino, Maravilhoso. As canções davam ritmo à cultura. Cabia de tudo nelas, do samba ao sertanejo, da bossa nova ao rock.

A dupla cancionista se agregou nos anos 1970 ao Rumo de Música Popular, um grupo de universitários que fazia canções experimentais. Era uma vanguarda que tinha a retaguarda como resguardo, que se embalava com as canções da era áurea e delas tirava seu rumo.

Ilustração de Bruna Barros para coluna de Mário Sérgio Conti de 17 de maio de 2024 - Bruna Barros/Folhapress

O teórico da turma era Tatit. Ambidestro, estudava linguística na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas e música na Escola de Comunicações e Artes, ambas na USP. No cerne de suas ideias está a noção de que a fala tem melodia —conforme o que quer dizer, o falante sobe ou desce a modulação, espicha ou abrevia fonemas.

Assim como na fala, a canção tem menos a ver com a literatura, e mesmo com a música, e mais com a entoação, o recurso sonoro que organiza o discurso oral.

É fácil notar isso em "Conversa de Botequim", de Noel Rosa, um ídolo de Tatit: "Seu garçom faça o favor de me trazer depressa/ uma boa média que não seja requentada/ um pão bem quente com manteiga à beça/ um guardanapo e um copo d’água bem gelada".

As primeiras canções do Rumo levavam esse princípio a ferro e fogo. Provocavam estranhamento, um efeito que o grupo procurava, mas que também o distanciava dos imperativos da indústria cultural. Não obstante, o Rumo teve um público devoto –paulistano e uspiano– até acabar, em meados dos anos 1990.

Ná e Tatit fizeram carreira solo. Ela gravou divinamente o repertório de Carmen Miranda, joias do cancioneiro e hits de Rita Lee, outra paulistana da gema. E ele ampliou o escopo da sua fala cantada, cujos picos são "Essa É pra Acabar", "Depois Melhora" e "Felicidade".

Eles retomam agora sua parceria em "De Lua", que traz lúcidos e novos lances dos dois. Estão no CD as sutis variações vocais de Ná e os achados verbais de Tatit, como "a fauna e a flora/ estão fora de si/ falta foca/ falta mico/ falta mata/ até palmito".

O CD sai numa quadra em que a canção não está mais no centro da cultura. A ideia de álbum —um corte no repertório com intenção estética— deu lugar às playlists, coletâneas que os consumidores montam.

Nunca se fizeram tantas canções, mas não por desígnio dos artistas, e sim porque a indústria precisa lançá-las continuamente e logo trocá-las por outras para abastecer o mercado. Efêmeras por natureza, as canções se sucedem sem que o ouvinte consiga retê-las na mente.

Vivemos tempos rombudos, de canções ribombantes. Compare-se o clip de Annita no candomblé, ou o show de Madonna em Copacabana, com Ná cantando que o "dengo é como um pingo de dendê".

O conceito de vanguarda se esvaneceu. Tatit tornou consciente o canto-fala, mas o que vingou foi o rap, que se escora só nas letras, de denúncia ou afrontamento. Faça-se um outro cotejo, o da braveza de um rap de Mano Brown com a leveza de Tatit ao cantar "da cabocla/ à perereca/ da biboca/ até a peteca".

Qual é melhor? A pergunta é descabida porque, como dizia um falecido compositor cearense, o novo sempre vem —e mormente vence. Ainda assim, restam as pérolas aos poucos de Ná e Tatit, os consolos da arte pela arte.

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