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Jornalista e crítico de TV, autor de "Topa Tudo por Dinheiro". É mestre em sociologia pela USP.

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Globo achou que o público fosse engolir uma novela medíocre como 'Travessia'

Diferenças entre a novela e 'Todas as Flores' sugerem que a emissora subestimou a audiência que consome TV aberta

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Uma das decisões mais surpreendentes da Globo neste ano foi o lançamento quase simultâneo de duas novelas das nove, "Travessia", de Gloria Perez, e "Todas as Flores", de João Emanuel Carneiro. A primeira estreou em 10 de outubro, na televisão aberta, e a segunda começou a ser oferecida aos assinantes do Globoplay no dia 19.

Aparentemente, a Globo entendeu que a trama de Carneiro seria uma boa isca destinada a fisgar novos assinantes para a sua plataforma de streaming. É uma novela mais curta (85 capítulos), dentro de um modelo bem tradicional, com uma mocinha cega, um mocinho idealista e vários vilões ardilosos. Entre os inúmeros paralelos com "Avenida Brasil", o maior sucesso do autor, há até um esquema de exploração de crianças pobres e órfãs.

A trama inclui pitadas de muito bom humor, um texto com referências contemporâneas, direção moderna, ritmo ágil, variadas cenas de sexo e um elenco afinado com o clima da novela. Destaque para Regina Casé, a malvada mor, e Sophie Charlotte, a ceguinha feita de trouxa no início. Tudo temperado por um melodrama despudorado, sem vergonha de ser exagerado.

A influenciadora e ex-BBB Jade Picon é Chiara em 'Travessia', nova novela das nove da Globo, escrita por Gloria Perez - Estevam Avelar/Divulgação

"Todas as Flores", enfim, é um novelão com a marca de Carneiro, um autor que, entre altos e baixos, nunca perdeu de vista o desejo de retratar a realidade e o mundo em que vive.

Já "Travessia" traz as marcas de um projeto envelhecido. Gloria Perez, uma discípula assumida de Janete Clair e devota de Nelson Rodrigues, parece acreditar que basta pegar o espectador pela emoção que está tudo resolvido; não precisa de uma grande história ou de uma trama verossímil.

É difícil entender como a Globo aprovou levar ao ar uma novela tão fraca. "Travessia" conta, basicamente, a história de dois jovens maranhenses (ele estudante de mestrado, ela lavadeira), vítimas de desencontros rocambolescos que os levaram a se separar e a brigar pela guarda do filho.

Não há praticamente mais nada na novela. Os personagens, em sua maioria, não têm história e só falam banalidades. Os ricos são medíocres, sem qualquer estofo e sem maiores ambições. Durante alguns capítulos, "Travessia" prometeu tratar de crimes virtuais, um bom tema, mas já deixou isso para trás.

Há uma família de classe média formada por negros, cujos maiores interesses são o fato de o filho mais novo ser um expert em jogos virtuais e o pai, um professor ginasial, ser neurótico e superprotetor. Há, ainda, um núcleo em torno de um bar em Vila Isabel, que repete ipsis literis situações já vistas em outras novelas da autora, incluindo a tradicional cena de música ao vivo com figurantes fingindo dançar ao fundo.

A direção aposta em cenas de sexo picantes com distorções visuais —uma pretensão de filme de arte que resulta apenas de mau gosto. Não há um capítulo sem três ou quatro cenas em que os personagens dialogam ao telefone. Não parece haver maior preocupação com a direção de atores. Os novatos e pouco experientes estão sendo submetidos a uma exposição constrangedora; alguns veteranos também.

A maior atração de "Travessia" é uma trinca de personagens que fez sucesso na novela "Salve Jorge", da mesma autora: uma delegada, sua empregada e um advogado, que vivem aos trancos e barrancos em tom cômico.

A decisão de lançar duas novelas de qualidades tão díspares ao mesmo tempo indica que a Globo subestimou de forma ostensiva o público que consome TV aberta. Como se ele não estivesse à altura de uma novela um pouco mais ambiciosa, como "Todas as Flores", e fosse engolir "Travessia". Os números de audiência indicam que o público não é tão bobo assim.

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