Jornalista e crítico de TV, autor de "Topa Tudo por Dinheiro". É mestre em sociologia pela USP.
'White Lotus' conforta o espectador ao mostrar ricos como cretinos
Quem vê a série recebe a beleza do cenário pelo preço de conviver com personagens neuróticos e egoístas
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Há tantas séries de televisão dedicadas a expor o mundo dos ricos que é possível dizer até que formam uma espécie de gênero. São quase sempre dramas temperados com humor ("dramédia"), altamente satíricas, eventualmente caricatas.
"Downton Abbey" e "Succession" estão possivelmente entre as realizações mais bem-sucedidas neste campo. Ambas falam de ricos inalcançáveis pelo ser humano comum, a primeira na Inglaterra do início do século 20 e a segunda nos Estados Unidos de hoje.
Há um outro conjunto de séries que buscam retratar ricos um pouco mais próximos do chão. Penso, por exemplo, em "Big Little Lies", "Nove Desconhecidos" e "The White Lotus". São séries que, de alguma forma, produzem o efeito de confortar o espectador. Seus belos protagonistas são inseguros e cretinos, eventualmente cruéis, canalhas e tão idiotas como a gente gostaria que eles fossem.
O que coloca "White Lotus" num patamar superior, na minha opinião, é o esforço do criador da série, Mike White, de apresentar os seus ricos em paralelo com aqueles que os servem, o "andar de baixo", como retratado literalmente por Julian Fellowes em "Downton Abbey".
As duas temporadas de "White Lotus", na HBO, obedecem a um mesmo formato, com histórias ambientadas em resorts de luxo; a primeira no Havaí, a segunda na Sicília. Ambas logo avisam que ocorreu um crime no local, deixando no ar o mistério que só será esclarecido no final.
O espectador é convidado a acompanhar o cotidiano dos pequenos grupos de hóspedes. Nesta segunda temporada, há dois jovens casais, três homens de gerações diferentes de uma mesma família, uma ricaça solitária e sua assistente, todos americanos, e um grupo de amigos gays, liderado por um inglês. Ao redor deles, há os funcionários do hotel e duas jovens prostitutas, todos italianos.
Tanya, a ricaça vivida por Jennifer Coolidge, é a única personagem que o espectador já conhecia. É um tipo tão fascinante quanto deplorável, que vive um palmo acima do chão, aparentemente por efeito de remédios, incapaz de enxergar as pessoas ao seu redor.
Na primeira temporada, ela alimentou a expectativa de uma funcionária do resort de que criaria um spa para ela administrar. E desistiu da ideia sem qualquer consideração pela mulher. Nesta temporada, ela viaja em companhia de uma jovem assistente, tratada com desprezo, que tem a função de apoiá-la nos momentos de maior fragilidade emocional.
Mais ainda que "Big Little Lies", "White Lotus" também apresenta uma estética publicitária, quase de promoção turística, com a exibição constante de paisagens espetaculares e cenas de lazer em palácios de luxo, iates e bares à beira da piscina. Olhando pelo lado positivo, é como se o espectador estivesse recebendo um adicional de beleza pelo preço de conviver com personagens tão neuróticos e egoístas.
Em 2021, numa entrevista à revista New Yorker, Mike White explicou a sua intenção com "White Lotus": "Achei interessante tentar entrar na cabeça de quem tem mais dinheiro e um pouco mais de poder. São pessoas que poderiam fazer algo sobre a desigualdade. Eu queria tentar entender por que eles não querem fazer algo a respeito, por que ficam na defensiva e o que usam para justificar a complacência e o medo da mudança. E fazer isso de uma maneira que parecesse crível". Parece crível, sim.
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