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Administrador de empresas pela FGV, doutor em urbanismo pela FAU-USP e autor do livro 'Espaço Público e Urbanidade em São Paulo'

A longa briga entre o Brasil e São Paulo pelo Campo de Marte não tem final feliz

O acordo assinado pela prefeitura ajuda as finanças no curto prazo, mas não abre portas para o desenvolvimento urbano no longo prazo

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São Paulo precisa acomodar centenas de milhares de novos habitantes. Um pedaço estratégico da cidade, porém, trava o desenvolvimento urbano —o Aeroporto do Campo de Marte.

O Campo de Marte está numa área de mais de 2 milhões de metros quadrados, num terreno pra lá de estratégico. Imagine um novo bairro nessa área. Pertinho do centro, arborizado, servido por transporte público, com espaço sobrando para moradia, serviços, comércio e um parque.

Infelizmente, não poderemos contar com isso. O acordo que está para ser homologado estabelece que a cidade vai receber apenas 400 mil metros quadrados, 19% do total. O resto permanece com a União. Em vez de retomarmos o terreno, seremos indenizados, mas a indenização vai ser usada para abater uma dívida que o Município tinha com a União.

Avião na pista do Campo de Marte; ao fundo, área preservada que fará parte do projeto do parque - Rubens Cavallari - 3.set.21/Folhapress

Como analisar esse acordo?

Inicialmente, achei que existiria algum jeito de negociar a devolução da área total, mas vários prefeitos já discutiram o assunto em Brasília e não conseguiram avançar. A leitura do acórdão do STJ mostra por que esse é um dos processos mais longos do Brasil. Vale a pena viajar ao passado para entender o imbróglio.

Em 1930, Getúlio Vargas extinguiu a aviação bélica do Estado de São Paulo, que ficava no Campo de Marte, e instalou ali um regimento da aviação do Exército Nacional. Com a Revolução de 1932, esse regimento aderiu à causa constitucionalista. O Campo de Marte foi bombardeado e a União tomou posse da área —numa ‘operação de guerra’—, que ocupa até hoje.

O município entrou, então, com uma ação em 1958 para tentar recuperar o terreno. Nesses 64 anos(!), o processo andou, parou, subiu para instâncias superiores e gerou pelo menos uma pérola jurídica que nos faz voltar... ao século 18.

Em algum momento, os advogados da União chegaram a lembrar que naquela época, o terreno pertencia à Companhia de Jesus. Quando os jesuítas foram expulsos pelo Marquês de Pombal, a Coroa teria ficado legalmente dona do terreno. O argumento não colou porque a Procuradoria Geral do Município mostrou que, com a proclamação da República, as terras devolutas foram transferidas do Estado para o Município. Ou seja, as terras pertenciam, de fato, a São Paulo até serem tomadas.

Enquanto o processo seguia lentamente por essas picadas jurídicas, a União construiu um aeroporto, fez benfeitorias, pistas, hangares, instalações. O resultado é que essa área ‘afetada’ não precisa mais ser devolvida. Sem acordo, ao Município, cabe apenas pedir indenização.

A saga é interessante para quem estuda os meandros legais, mas para quem se ocupa do futuro da cidade, o resultado é triste. A União não cuida do Desenvolvimento Urbano da cidade. A Prefeitura, sim. É por isso que cabe questionar o efeito do acordo.

A indenização pedida de R$ 49 bilhões não seria necessariamente aceita, mas é sem dúvida muito maior que a dívida da cidade, hoje em 25 bilhões. Essa diferença talvez pudesse ter sido usada para alavancar um acordo melhor.

Um exemplo teria sido uma negociação com a Aeronáutica para suprimir os voos de aviões e manter apenas os de helicópteros (São Paulo tem a segunda frota do mundo). Os voos seriam redistribuídos pelos aeroportos na região metropolitana, haveria menos restrições para as construções na aproximação da pista e uma nova frente de desenvolvimento urbano seria aberta.

No fundo, o acordo traz alívio nas contas de curto prazo —que podem ou não se traduzir em benefícios perenes à cidade— sem buscar os benefícios de longo prazo que uma região como essa poderia trazer.

Continuaremos a ter um aeroporto (que ainda vai ser concessionado) numa área urbanizada, assistiremos à construção de uma escola militar que poderia estar em qualquer lugar e conviveremos com o enclave que trava o crescimento da cidade. Sim, ganharemos um parque, mas parece pouco diante do tamanho do desafio de desenvolvimento urbano.

A guerra de 90 anos atrás parece assombrar o presente mesmo que a cidade 1930 não exista mais. São Paulo tinha um milhão de habitantes, hoje tem 12 milhões. O rio Tietê tinha meandros românticos e hoje é retificado. A região era vazia e hoje é a porta de entrada para um dos eixos de crescimento previstos no Plano Diretor.

São Paulo perdeu a guerra e agora vai perder definitivamente o direito a um terreno que era seu para pagar uma dívida que está equacionada. É um lembrete poderoso do quanto o futuro da cidade precisa ser considerado no planejamento que estamos fazendo no presente.

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