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Paixões, desencontros, estabilidade e loucuras segundo Anna Virginia Balloussier, Pedro Mairal, Milly Lacombe e Chico Felitti. Uma pausa nas notícias pra gente lembrar tudo aquilo que também interessa demais.

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O campinho de futebol no chão do quarto

Estávamos apenas possuídos de euforia e de desejos

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Milly Lacombe

Eu não lembro exatamente como decidimos pegar aquela fita durex amarela e grudar no chão do seu quarto. Disso não lembro. Mas lembro do que aconteceu depois que usamos a fita para traçar os limites do que viria a ser um campo de futebol desenhado com durex sobre o assoalho de madeira. Naquele momento criamos um estádio só nosso, onde jogos memoráveis aconteceriam.

Eu também não me lembro do que a mamãe achou dessa inauguração porque, afinal, o campo estava no quarto de vocês e nossos jogos duravam algumas horas já que, num mesmo dia, um campeonato inteiro acontecia. Não lembro dela reclamando, e sei que isso eu escolhi apagar da memória porque não é possível que ela, brava como era, tivesse deixado de dar umas broncas na gente e na gritaria que cada partida produzia.

O que lembro em muitos detalhes é de como a gente construía nossos times. Os jogadores eram tampinhas de garrafas de refrigerantes, e os goleiros, um pouco maiores, eram aquelas tampinhas prateadas de uma garrafa de cerveja que eu sei que você só comprava para repor os guarda-metas — como você às vezes se referia aos goleiros. Sei disso porque você não tomava cerveja.

Aos poucos, começou a me parecer absolutamente normal a forma paranoica com que passamos a reagir quando alguém em casa pegava uma garrafa de refrigerante nas mãos. Nessa hora nós dois berrávamos enquanto corríamos em direção à pessoa: "Cuidado! Deixa que eu abro! Não pega o abridor desse jeito! Olha o que você tá fazendo. Você tá machucando a tampinha! Cuidado!". A gente sabia perfeitamente que aquela não era uma tampinha, aquele era um jogador. Onde todos viam tampinha, a gente via sonhos.

Tínhamos plena consciência de que uma munheca pesada e descompromissada, armada de um abridor, amassaria a tampinha a ponto de inutilizá-la para sua função primordial, que era praticar a arte do futebol de tampinha. O resto da casa nos julgava amalucados e adoentados, mas não estávamos nem malucos, nem doentes. Estávamos apenas possuídos de euforia e de desejos. A técnica que adquirimos para abrir uma garrafa sem danificar a tampinha era digna de aplausos, mas apenas você e eu vibrávamos. O resto da casa reclamava da "demora ridícula para abrir uma simples garrafa de refrigerante".

Lembro de você sentado no chão dando seus petelecos nas tampinhas. Lembro de como eu posicionava o goleiro tentando fechar os ângulos para evitar um gol do seu time. Lembro de como eu ficava feliz quando o goleiro prateado fazia uma defesa. Lembro de como você levava os jogos a sério, legitimando meus delírios, me explicando sobre o futebol, sobre a alegria de vencer e a importância de perder.

Aquelas tampinhas não eram mais tampinhas, mas só você e eu sabíamos disso. Você me ensinou sobre a importância de mudar o olhar para ver elementos novos em lugares velhos. Foi ali naquele campinho monodimensional que eu aprendi que as coisas têm o significado que a gente dá a elas. Foi ali que entendi que um tabuleiro improvisado e desenhado sobre um chão de madeira pode ser tão sagrado quanto o Maracanã, o Camp Nou, a Bombonera ou Wembley.

Aquele campinho não existe mais no chão do quarto que um dia já foi também seu e que hoje é só da mamãe. Você não existe mais. Mas o amor que ainda sinto me aproxima de você e daquele ambiente que um dia foi tão nosso. O amor, esse sentimento que transcende as leis do tempo-espaço, me ensina que, para te reencontrar, basta fechar meus olhos e ajustar minha consciência. É assim que, muitas e muitas vezes, a gente volta a jogar futebol de tampinha no chão do quarto.

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