Nosso estranho amor

Paixões, desencontros, estabilidade e loucuras segundo Anna Virginia Balloussier, Pedro Mairal, Milly Lacombe e Chico Felitti. Uma pausa nas notícias pra gente lembrar tudo aquilo que também interessa demais.

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Nosso estranho amor
Descrição de chapéu casamento

Sem Filhos

Ninguém jamais teria dito que esses dois foram feitos um para o outro

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Pedro Mairal

Ela é suburbana, ele, urbano. Ela é de casa, da terra, do jardim, das mãos sujas em vasos e canteiros. Ele, de apartamento, camisa branca, piso impecável e lustroso. Ela tem cachorro, dois gatos, pelos de animais na roupa, pratinhos de comida na cozinha, móveis mordidos, poltronas arranhadas. Ele, sem uma planta, nem um único ser vivo em seu apartamento.

Disto, sim, ele gosta: ser o único ser vivo em casa. O único que suja, que sofre e goza, e tem fome é o seu corpo. A única coisa que cresce, que cheira a algo vivo, que muda e pode morrer. Ele pode ficar um bom tempo em silêncio, sentado olhando para a sua biblioteca, sem checar o celular, sem escutar música.

Sentado na atmosfera do ruído da cidade, um murmúrio abafado pelo vidro antirruído, uma trilha sonora feita de buzinas, motores, uma ou outra serra elétrica de alguma construção, o barulho do elevador, o salto alto da vizinha. Apenas esses sons, distantes, na altura do décimo andar, rodeando-o na calma.

Casal abraçado em um campo
Pixabay

Ele não se deprime; ele escreve. O que muda, além de seu corpo, é a quantidade de caracteres em seu novo arquivo e a caligrafia que vai preenchendo as páginas de um caderno. Isso, sim, cresce, aumenta, se acumula. Sua botânica secreta de multiplicação celular, ali dentro de seu laptop e de seu bloco de notas. A coisa viva está ali, esse é seu jardim, sua fertilidade. Ele vai dormir pensando na história que está escrevendo e, ao despertar, uma dificuldade se resolveu sozinha, se desatou, como se algo se movesse durante o sonho.

Precisa da quietude de seu apartamento sem nem um mosquito sequer, confia nessa invariabilidade da sua casa para acelerar as partículas de todas as variáveis narrativas dentro do seu reino de palavras.
Para que seu texto viva ele tem que estar meio morto.

Ela, em compensação, com seu dedo verde, parece atravessada pela matéria orgânica. Em sua composteira no fundo do jardim se retorcem com fúria minhocas pretas. Tudo está morrendo e nascendo ao mesmo tempo ao redor dela. Durante a noite, abrem-se as grandes folhas de abóbora, apodrecem as magnólias, a gata pare seis gatinhos molhados.

Ela, mulher de ONGs, de projetos de sustentabilidade, de vez em quando vai a escritórios elegantes fazer apresentações. Mas sempre quer voltar ao seu barro, ao odor sexual do seu terreno, à pergunta incessante da fertilidade, à resposta obscura de lambuzar-se com húmus até os cotovelos. O desespero esperançoso da terra, sua casa, onde entram as grandes baratas, as formigas, o cachorro com um pássaro que ele encontrou morto por aí.

Em um desses escritórios, eles se cruzam. O projeto que reúne apenas as disciplinas de ambos não prospera, mas eles ficam em contato. Ela vai gostar do aquário vazio do apartamento dele, da biblioteca onde ler em silêncio, de tomar chá olhando a avenida, sabendo que nenhum ser vivo vai subir no seu pé. Ela aguenta ficar ali por dois dias, no máximo, depois já quer ir embora. Ele vai gostar da casa dela, tão inquietante, tão diferente da sua, tão inesperada e traspassada de histórias e microtragédias naturais.

Mas, também, depois de dois dias já quer voltar ao seu apartamento. E assim vão estabelecer uma relação de casas separadas, sem filhos. Isso está claro para os dois. Vão passar os anos, depois as décadas, com seu sistema de visitas e despedidas, invasões acordadas, acompanhando-se desse modo intermitente, respeitando-se em seus espaços.

Ela meio apaixonada pela biblioteca dele, não tanto por seus escritos. Ele, muito afeiçoado pelo jardim dela, não tanto pelo cachorro. Um casal sólido e silenciosamente feliz. Ninguém jamais teria dito que esses dois foram feitos um para o outro.

Tradução Livia Deorsola

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